A água se infiltrava pelos vãos das tábuas do assoalho e pelos ralos do chão da cozinha e do banheiro. Aos poucos, a casa toda começava a ser inundada pelo líquido pegajoso, de cor barrenta. A mãe não sabia o que fazer. Procurou as crianças. O filho caçula que estava à janela vendo a rua transformar-se num grande rio, ela colocou sobre a mesa de costura e, já com lágrimas nos olhos, mandou que não saísse dali. A menina do meio, segurando uma boneca maior que ela, correu e usou uma cadeira para imitar o irmão encima do tampo. Faltava Doroti, a maiorzinha, que estava no portão quando a chuva começou a cair. Só agora ela se dera conta de não saber onde andava a menina.
Já com as águas pelas canelas, procurou pelos cômodos do velho casarão. Passou pelos dois quartos, pelo que chamavam de hall, pela sala, pela cozinha. Olhou no quartinho dos fundos, no banheiro. Correu para o quintal.
Só aí entendeu o que acabara de acontecer.
O estrondo que ouvira minutos atrás foi provocado pelo transbordamento no inofensivo córrego que passava atrás da casa. A força das águas derrubara o muro e, agora, a mulher via à sua frente que a enchente chegava até quase o topo da escada de 16 degraus. As águas tomavam toda a extensão do quintal e invadiam o porão. Não paravam de subir.
A cadela Branquinha já não fazia jus ao nome. Nadava enlameada em direção ao que restou da murada. Latia, esganiçava como se quisesse alertar sobre algo. Difícil de precisar o quê nessas horas.
Um pensamento horrível lhe passou pela cabeça.
A correnteza. A correnteza levara a menina…
Sentiu um aperto no peito, uma vertigem.
E agora?
(…)
Quando voltou a si, a mulher estava na casa da mãe, na parte alta da rua – livre da inundação. O marido ao lado lhe segurava uma das mãos enquanto o médico lhe tomava o pulso da outra. Continuava lívida, e não conseguia articular uma palavra sequer. Teve vontade de voltar a desmaiar, perder a consciência, dormir. Tudo para não saber o pior.
Os olhos procuraram o teto, uma forma de fugir. Pensou em fechá-los. Mas, logo reconheceu a voz mais do que amada.
— Mãe, mãe… Estou aqui, estou aqui.
Como um autômato, levantou-se abruptamente para ver a menina nos braços da vizinha. Sorridente, as tranças desfeitas, o ar de sapeca.
A alegria e o salto foram tamanhos que, outra vez, sentiu o aperto no peito, a vertigem…
Desmaiou.
(…)
Desta feita, ficou sem sentidos por apenas alguns instantes. Logo voltou a si e soube, pelo marido, de toda história. Ele chegara a tempo de lhe socorrer antes que tombasse nas águas. Fora direto para a casa da sogra no barco dos bombeiros e nos braços do seu herói. A cadela Branquinha era assustada por instinto e raça. E a menina, na hora da chuva, assustou-se e correu para a casa da vizinha que ainda não havia sido tomada pelas águas.
— E a nossa casa? – perguntou aflita.
— Está que é uma lama só. Amanhã a gente vê o que sobrou. Por enquanto, descansa que eu cuido das crianças.
(…)
Ficamos por algumas semanas na casa do vô Carlito e da vó Ignês. O pai e a mãe, mais alguns amigos e o tio Neno, iam todos os dias na nossa casa “para limpar e tirar o cheiro de barro”. A mãe voltava desolada. Só se acalmava quando o pai lhe pedia paciência. O dono da fábrica onde trabalhava iria trocar os móveis e prometera lhe dar os antigos. Para minhas irmãs, tanto fazia viver em uma casa ou em outra. Estavam mais perto da escola e sempre inventavam uma brincadeira boba; boneca, casinha, costureira, essas coisas de meninas.
Eu era o único que estava ansioso por voltar.
Tinha um bom motivo: rever Cidinha, a menina que morava ao lado. Tinha a minha idade, 5 para 6 anos; cabelos claros e, querem saber?, me chamava de “namorado”…