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A filha mais nova do Seo Libório

“Eu sei que você vai ser
uma estrela no céu de alguém,
mas por que não pode ser no meu?”

Aconteceu sem que o Almeidinha se desse conta, e foi no mais antigo dos anos. No tempo da velha redação de piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor.

Negar, bem que ele negou. Jurar, também jurou. Mas ninguém, ali, o levou em conta. Dizia-se, o pobre, inocente e sequer sabia da existência das três filhas do Seo Libório. O que dizer então da mais nova, quase uma criança, motivo pelo qual naquele preciso instante estava sendo sacaneado pelo pessoal da Redação.

— Conta a verdade. Só a verdade. Assim todos param de lhe aborrecer, dizia um.

— A verdade nada mais que a verdade. Conhecemos sua fama, dizia outro.

— Vai me dizer que você não conhece a filha mais nova do Seo Libório?

Não conhecia.

E a verdade?

Bem, era aquela mesmo que contou para eles naquela tarde e agora reconto a vocês, com uma ponta de nostalgia e outro tanto de encantamento. Inclusive, com seu surpreendente final.

Por que como o Almedinha, repórter das antigas e inveterado romântico, conheci poucos vida afora.

II.

A história é a seguinte.

Naquela manhã de novembro, o notório jornalista foi tomar um café no bar/restaurante, desses que em nome da modernidade se transformaram em self-service. Não atentou que faltavam poucos minutos para o meio-dia e lá encontrou Seo Libório, o simpático senhor que era atendente na portaria do jornal. Ele almoçava e o cumprimentou, como de hábito amavelmente. Chegou mesmo a oferecer um lugar à sua mesa. Mas, Almeidinha agradeceu, disse que não iria comer, o serviço o esperava e, por um desses impulsos comuns aos que trabalhavam nas antigas redações, deixou paga a conta do café e a dele.

Alguns minutos depois, lá estava o bom velhinho na Redação para agradecer. E também para lhe pedir um favor. Disse que a filha mais nova queria fazer jornalismo, estava preste a se formar no colegial, 18 para 19 anos, portanto. Disse mais: havia prometido a ela que falaria com o editor, o próprio Almeidinha, “para, dia desses, lhe dar uma orientação sobre a profissão, a faculdade, essas coisas”.

Questão de segundos, Seo Libório desceu para assumir suas funções no térreo e, de imediato, começaram os elogios à garota.

— Lindíssima, disse o fotógrafo que a conheceu num desfile cívico estudantil de 7 de setembro na presença do embevecido pai. – Ela, sim, é uma parada.

— É uma menina muito esperta. De rosto, lembra a Júlia Roberts, mas é mais taludinha, empolgou-se o repórter que morava numa vila, próximo ao sobradinho modesto do porteiro.

— Vai dar trabalho, disse a senhora que servia o café para me deixar ainda mais curioso. – É a xodózinha do Libório e de todos quantos a conhecem.

— Mas, é quase uma menina, completou Almeidinha para disfarçar e, se possível, encerrar o assunto.

Sentia-se, estranhamente, algo incomodado, ansioso.

Pior a emenda que o soneto. Todos riram.

— Quem não lhe conhece que lhe compre, arrematou a estagiária feiosa a duvidar da absoluta inocência do chefe e visivelmente preocupada com a possível concorrente.

III.

Na redação, todos notaram a repentina mudança. Parecia que o homem, desde daquele dia, estava a se preparar para o encontro.

Eu, particularmente, tenho tendência para ficar imaginando coisas. Dei de reparar que Almeidinha vinha diariamente com a barba feita, o farto bigode aparado e se preocupava em não usar as velhas camisas surradas de sempre.

Pode ser impressão, mas, todos concordavam, minhas observações faziam sentido.

Seo Libório, por sua vez e inocentemente, tratava de por mais lenha na fogueira.

Contou à filha a gentileza de Almeidinha (“que bobagem”, relevou cinicamente) e disse que ela ficou ainda mais interessada em conhecê-lo. Elogiava sempre os seus textos e agora então…

O que seria esse “e agora então”?

— Fico feliz em poder ajudar, antecipou-se Almeidinha, mais para espicaçar a estagiária faladora – e acrescentou:

— Quem sabe ela não pode ficar por aqui uns dias, e ver como a coisa funciona.

IV.

Depois desse dia, Seo Libório por conta e risco postergou a visita da moça três ou quatro vezes.

Quando não tocava no assunto, era a vez de Almeidinha não se fazer de rogado.

– Olha, às sextas-feiras, é o melhor dia para ela vir, retomei o tema.

Ele aquiesceu sorrindo e, ainda sem querer, lhe provocou:

— Ela quer tanto conhecê-lo.

O bom-dia do Seo Libório continuou o mesmo. Amável e simpático. Mas, pouco a pouco, mesmo com singelas recomendações à garota, nada do homem dizer quando ela viria. O entusiasmo, a essa altura, era só do Almeidinha, como lhes disse acima um inveterado romântico, desses que ainda mandam flores à mulher amada.

V.

O devaneio do amigo foi pelos ares, logo na primeira semana de janeiro.

Seo Libório subiu à Redação, com o semblante preocupado, mas orgulhoso. Não foi preciso lhe perguntar. Apressou-se em dizer a todos nós:

— É a minha menina, a mais nova…(Almeidinha fingiu uma certa ausência, como a não entender o que dizia.) Pois ela mudou de planos. Não quer mais fazer jornalismo. Ao menos, por enquanto.

O jornalista abriu as duas mãos num gesto inconsciente e rápido. E Seo Libório completou, com voz arrastada e a tropeçar na emoção.

— A minha mais nova quer ganhar o mundo.

— Como assim, alguém perguntou.

— Viajou para Londres sem data para retornar. Foi num intercâmbio que ela mesma arrumou e, sei bem, não volta tão cedo. Quer conhecer outros países, outros povos. É uma destemida, não acham?

Almeidinha foi sincero:

— Eu não acho nada. Só perco.

— Como assim?

— Nada, nada. Vai ser uma experiência e tanto. Lá estará certamente melhor do que aqui. Veja a questão da violência desta cidade – caprichou na resposta para driblar o constrangimento e a própria decepção.

VI.

Isto posto, nada a declarar.

Vida que segue.

Nas primeiras semanas, meses até, ele fazia questão de nos informar (e ao Almeidinha, casmurro que só) sobre o paradeiro da moça.

— A minha mais nova está em Paris.

— Agora foi para Madri. Vai trabalhar lá.

— Precisa ver o cartão que me mandou de Roma.

— Imagine para onde aquela maluquinha vai agora…

Seo Libório sabia de cor o roteiro das andanças. Mas, as novidades foram escasseando. Até que não se falou mais no assunto.

VI.

Mesmo assim, naquela noite, tanto tempo depois, Almeidinha e o pessoal da Redação comemoravam sei lá o quê quando viram chegar ao restaurante o músico Caçulinha, aquele mesmo do programa do Faustão. O homem viera terminar a noite com alguns amigos e, inevitável, logo o salão e os convivas ficaram em grande alvoroço. De repente, ninguém sabe de onde, surgiu um acordeom – e Caçulinha se pôs a tocar La Vie En Rose.

Não sei se foi o tom inebriante da melodia, o efeito das bebidas ou a alegria retumbante de todos ali, a verdade é que o grande e magnânimo Almeidinha resolveu fazer uma inesperada confissão:

– Que fim levou a filha mais nova do Seo Libório? Meus amigos, preciso lhes dizer: ainda hoje, todas as manhãs, espero a boa notícia. Antes mesmo que o amável Libório me dê “bom dia”, imagino ouvir dele um “ enfim, ela voltou”.

A princípio, não entendemos direito o que estava acontecendo, mas o veterano jornalista, breaco que só, afrouxou ainda mais gravata no colarinho aberto, deu outra golada no vinho e continuou em tom de desabafo:

– Nem sei o porquê lhes conto sobre ela agora. Talvez porque ainda bata em mim o vislumbre do que poderia ser, e não foi. Quem sabe um de vocês não tenha andado recentemente pela Europa e lá tivesse visto, mesmo que assim de relance, uma brasileirinha esperta com ares de quem quer ganhar o mundo, taludinha de corpo, mas que lembra, como é mesmo nome daquela atriz?

E concluiu:

– Sei, sei, não a conheço. Mas, sinto tanto a sua falta…