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A heresia

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Foto: Agência Brasil/Divulgação

Morte de Freddie Mercury completou 30 anos nesta quarta, dia 24.

Tínhamos o quê?

Vinte e poucos anos, recém formados em jornalismo pela ECA/USP, batíamos de redação em redação atrás de encaixarmos nossos textos na editoria de Arte & Cultura, como se dizia então.

Chegamos inclusive a abrir um jornal quinzenal – o combativo Jornal da Mooca, de brevíssima existência – para nos aventurarmos como donos e senhores do nosso livre-arbítrio.

Éramos jovens e, diria, algo inconsequente.

Eu escrevia sobre música popular. Seus fatos, personagens e feitos.

O amigo Clóvis Naconecy se arvorava a especialista no pop-rock internacional.

Tínhamos lá nossos ídolos – óbvio, cada qual em sua área de atuação – e nossas querelas.

Clóvis respeitava o Chico compositor, mas fazia a ressalva:

“Como cantor, é péssimo!”

Caetano e Gil, para ele, eram apenas baianos malemolentes , sem maior expressão artística.

Ben Jor – ainda apenas Jorge Ben – era mais do mesmo. Sempre!

De minha parte, eu esculhambava, à la Tinhorão, todo e qualquer lançamento que não falasse nosso bendito idioma pátrio.

Dizia que a enxurrada de música internacional que invadia a programação de nossas emissoras de rádio escancarava uma cruel desfeita ao nosso rico patrimônio de gêneros e estilos musicais.

Que esse estrangeirismo exacerbado só contribuía para à alienação imposta pela ditadura em voga.

Que isso era próprio a quem se curvava aos mandos e desmandos do capitalismo ianque.

Ah, aqueles anos 70 eram pródigos em discussões aleatórias (muitas vezes, inúteis) – e em soberbas amizades.

Debatíamos por debater, com gosto e paixão.

Diria que essas arengas provinham de um interesse descomunal em saber mais e mais.

A bem da verdade, nem ele, nem eu, pensávamos exata e fortemente assim.

Tínhamos nossas preferências.

Só não queríamos fraternalmente dar o braço a torcer.

Lembro a tarde quando o Clóvis chegou empolgado para me mostrar o som de um emergente grupo inglês.

“Espetacular”, segundo ele.

Era o lançamento de Bohemian Rhapsody, do Queen.

Imaginem a cena.

Aquele silêncio que precede os temporais.

Os grandes momentos.

Pois foi assim que se deu.

O vinil a girar no mastodôntico toca-disco.

O som no mais alto volume.

A voz, sólida e implacável, de Freddie Mercury a trincar os ares e fazer tremer as paredes da pequena redação do JM.

(Na verdade, uma garagem improvisada com duas mesas, um telefone preto, cadeiras e duas máquinas de escrever, além de outros babilaques.)

O amigo, a sorrir com ares de vencedor.

E eu a batucar na mente como me sairia dessa ileso.

– E aí, Rudi? Gostou?

Não tinha como não concordar.

Uma pancadaça nos tínpanos, no coração e na alma.

Procurava, no entanto, as palavras certas para lhe dizer do meu êxtase diante de tamanho encantamento.

Mas, ele, provocativo, insistiu:

– Bem melhor que suas baianidades, não?

Aí, não suportei o sarcasmo do adendo. Deixei baixar o carcamano – e tal e qual um torcedor na arquibancada que vê seu time sofrer um gol inesperado, respondi na lata:

“Nada além do que uma opereta de fundo de quintal”.

Que os deuses da música me perdoem por tamanha heresia!

Mas, foi assim que conheci o Queem e a arrebatadora voz de Freddie Mercury.

Como lhes disse antes, éramos jovens, inconsequentes e turrões.

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