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À memória do amigo Ruggiero

Éramos jovens e inconsequentes, na opinião do Marques, o veterano jornalista que dividia com a gente aqueles dias encantados, na velha redação de piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor.

É muito provável que fossemos mesmo.

Tínhamos pouco mais de 20 anos e toda a pretensão do mundo.

O único que escapava a esse perfil, creio, era o Ruggiero.

Não lembro se era casado, se tinha filhos. Lembro que tinha outro emprego – funcionário público, da Justiça Eleitoral –, um ar professoral e aparecia na redação uma vez por semana para entregar a coluna de teatro.

Ele se auto-intitulava “crítico de teatro” e tinha o objetivo de ser renomado dramaturgo. Aliás, já havia escolhido o título para a sua primeira montagem: Canção à Terra Amanhecida.

Poético, muito apropriado para o contexto sombrio e esperançoso daqueles idos dos anos 70.

II.

Como disse acima, éramos jovens e incosequentes.

Por isso, não faltavam comentários e piadas entre nós sobre o colaborador e suas platitudes.

É bem verdade que a peça nunca saiu.

Ruggiero, indiferente a tudo e a todos, falou que a temática era ótima para um volumoso romance épico que logo, logo estaria publicado. Aí, sim, pensaria em transformar o texto em uma versão teatral. Afinal, eram muitas as verdades a serem ditas.

O romance também não vingou. E, por fim, Canção à Terra Amanhecida virou uma longa poesia que, serei sincero, não nos demos ao trabalho de ler. Mas, foi impressa em um pequeno livreto, de tiragem reduzida e edição humilde.

III.

Para divulgar a proeza, Ruggiero não teve dúvidas.

Realizou uma auto-entrevista, falando da função social da arte e tecendo elogios aos novos e corajosos rumos da literatura nativa.

Ficamos abestados quando o AC, o editor, sinalizou positivamente para aquele arrazoado de letrinhas e encaminhou ao diagramador para que fosse publicado com destaque.

IV.

Repito. Éramos jovens e inconseqüentes, mas imaginávamos ter alguma noção de jornalismo.

Fomos lá “peitar” o AC sobre a decisão.

Como de hábito, deu de ombros para os nossos reclamos.

Foi definitivo na argumentação:

— Aqui, mando eu. Deixem de ciúmes. Não há nada de errado com o Ruggiero, ele é apenas um sonhador. Aprendam com ele a lutar pelos próprios sonhos, se é que vocês têm algum.

V.

Semanas depois, Ruggiero começou a rarear em suas visitas à Redação.

Soubemos, então, que estava com uma doença incurável.

Só aí entendemos o que o levou a fazer o que fez.

A notícia de sua morte chegou em uma tarde nebulosa e indecisa como a de hoje.

As máquinas de escrever pararam por alguns minutos. Ficamos em silêncio a remoer nossos remorsos e tristezas .

Éramos jovens, inconsequentes e, naquele momento, reverenciávamos a memória de quem nos ensinou que a vida só vale a pena se lutarmos por nossos sonhos.

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