Eram todas as canções.
Ele sempre lhe dizia isso, com o verbo no presente.
“Somos todas as canções”.
Ela gostava de ouvi-lo. Mas, fingia indiferença e que não entendia bem o que estava a lhe oferecer. Gostou dele desde o primeiro momento, mas depois se assustou quando percebeu que era correspondida. Tão diferentes. Sua vida seria revirada, os sentimentos de pernas para o ar. Como explicar ao mundo aquele relacionamento? Mesmo assim, arriscou, mas cuidou de não abrir a guarda. Fez e aconteceu para que ninguém suspeitasse de que era mesmo para valer.
Quando estavam juntos sentia-se bem. Protegida, amada. Parece que a vida fazia mais sentido.
“Somos todas as canções” – ele dizia.
De repente, vinha o medo de que tudo, de repente, desandasse – e ela voltasse a ficar só. Vivera uma péssima experiência há algum tempo. Inteiramente diferente da que ele propunha agora, mas não queria voltar a enfrentar o charco da solidão. Lembrava o quanto foi difícil recuperar a auto-estima, a vida social, a vontade de ir para as baladas e, melhor, divertir-se a valer.
Daí a indiferença e o “como assim” que sempre lhe dava como resposta.
— Assim, assim… – ele lhe explicava, trazendo o seu corpo para junto dele.
Ela esquecia as convenções, as noitadas insanas e deixava acontecer. No dia seguinte, cobrava-se uma postura mais firme. Era só um bom momento. Não podia se deixar levar. Tinha tanta coisa ainda para viver, para conhecer. Precisava dar um jeito. Por um ponto final, antes que fosse tarde demais. Ele sofreria, mas enfim… É da vida e dos amores.
II.
Nos primeiras semanas, ainda se falaram pelo celular, como se nada tivesse acontecido. Às vezes, ela própria ainda se sentia presa a ele – e aos projetos bobos que gostavam de fazer. Coisa de cinema. Não existe amor assim, justificava a si mesmo
Mas, essas conversas foram ficando mais e mais esparsas. Já identificava um tom de mágoa na voz do outro lado da linha. Não eram raras as vezes em que discutiam feio e ficavam semanas sem se falar.
Aí era a vez dela tomar a iniciativa. Queria saber dele. Estava bem? Como ia o trabalho? Alguma novidade? Tinha medo que lhe perguntasse se estava ‘ficando’ com alguém. Nunca lhe diria. Esconderia o assunto com meias-verdades. Por outra. Tinha horror em saber que ele se apaixonara e agora ela havia descambado para o limbo dos seres sem luz.
Muitas vezes, quando estavam juntos, encantavam-se a resgatar a história maluca dos dois. Riam tanto das atrapalhadas, dos desencontros. Do primeiro beijo num Frans Café da vida que escandalizou os que estavam ao redor. Talvez fossem mesmo predestinados. Iluminados. Não se vive um sentimento assim duas vezes. Entusiasmo é uma coisa. Sentimento, sentimento é outra.
III.
“Somos todas as canções”.
Vá entender as mulheres. Será que ele tinha razão? E agora? Faz ano e tanto que não se viam. Há meses não se falavam. Poderiam ser bons amigos. Mas, ele não aceitava. Que bobagem. Dias desses ela tentou ligar uma, duas, três vezes. Nada. Tinha certeza que, ao menos o número do telefone, ele reconheceria no visor do celular. Por que não atendeu? Por que não retornou a ligação?
Estranhou essa inquietação. Opa, opa. Tratou de deixar claro para si própria. Era diferente o que sentia por ele. Não podia ser o mesmo que ele dizia sentir por ela. Não, não. Era diferente. Foi só um momento, um vacilo.
Mas, o que significava essa sensação agora. Uma falta de ar. Um aperto no peito. Uma ardência nos olhos. Não pode ser. Arrependimento. Não. Só queria saber se estava tudo bem. Gostava dele, um cara bacana e tal.
Sentiu um calafrio ao recordar as últimas palavras ao telefone. Ele lhe cobrou coerência, que ponderasse. Ela o despachou.
— Não entendo assim. Vamos deixar tudo como está.
Ficou aliviada quando ele desligou. Aqueles segundos de silêncio arrastaram-se, intermináveis. Despediam-se para sempre pela milionésima vez. Mas nem ela acreditava no adeus…
Olhou a cidade aos seus pés. Abriu os olhos ao toque da comissária a lhe indicar que ajustasse o banco. Começavam os procedimentos de aterrissagem. Logo estaria de volta, em terra firme. Talvez o procurasse, talvez não. Claro que sim.
Sorriu ao desvendar o segredo que, só agora percebera, guardou a sete chaves, inclusive dela mesmo. Teriam uma segunda chance. Afinal, eram todas as canções, não é assim?
Era fim de tarde na metrópole das canções que nunca mais se ouviu.
Chovia…