Até ontem, ela imaginava já ter visto tudo nesta vida.
Tem oitenta e tralalá.
Mas, quando lhe perguntam, nunca diz a idade exata.
Prefere fazer o tempo retroceder.
Diz:
— Sou de 24. Faz as contas.
Não tem certeza se morava no Cambuci ou no Ipiranga quando veio a Revolução de 32.
Lembra que as pessoas não saíam de suas casas com medo dos anunciados confrontos entre as tropas Constitucionalistas e os soldados leais ao novo governo Vargas.
— Eu era uma criança, diz.
Depois veio a Guerra, a Segunda Grande Guerra. O rádio ‘capelinha’ trazia os rumores dos combates na Europa. Chegaram a noticiar que submarinos alemães bisbilhotavam a Costa brasileira. Faltava combustível – e, nas ruas, improvisavam automóveis movidos a gás.
Os pais chegavam a estocar comida em casa.
— Um tempo difícil, recorda-se.
Tempo que não se negou a passar para ela – e para os seus. Casou, criou os filhos que também se casaram. Vieram os netos – e até os bisnetos.
A doença degenerativa nos olhos faz com hoje só veja sombras.
O rádio continua a ser o companheiro de todas as horas.
À noite, senta diante da TV e ouve a novela. Às vezes, se confunde com os personagens. Pergunta se Fulano é o filho malvado do Sicrano ou se é a mocinha quem está em cena falando com a amiga.
— Sou do tempo da novela de rádio. Gosto porque sempre tem um final feliz. De tristezas, a vida está cheia…
Ontem, ela desligou o rádio assim que começaram as notícias da tragédia de Realengo.
Preferiu rezar em frente às imagens dos santos da sua devoção que tem no quarto do apartamento onde mora.
À noite, foi dormir mais cedo.
Não viu o telejornal, nem a novela.
— Que calamidade! Nunca imaginei ver uma tragédia dessas no Brasil.
E mais não disse.
Todos entenderam a infinda tristeza da velha senhora.