Uma voz aguda e uma romântica melodia trouxeram de volta à televisão os grandes festivais que lançaram os mais expressivos nomes da MBP nos anos 60. Em 1985, o Festival dos Festivais, realizado pela Rede Globo, foi marcado pelos trinados de Tetê Espíndola, cantora da música vencedora Escrito nas Estrelas. Se o último dos festivais reviveu no público a emoção dos tempos de ouro da TV Record , nos bastidores do evento estava Solano Ribeiro em pleno Maracanãzinho, com a sensação do dever cumprido…
Na verdade, essa mesma sensação o produtor e diretor musical já havia experimentado 20 anos antes, quando idealizou o primeiro Festival de Música Popular Brasileira na extinta TV Excelsior. A vitória ficou com Arrastão, de Vinícius de Moraes e Edu Lobo. Mas, a grande revelação do festival foi mesmo uma cantora gaúcha, radicada até então no Rio de Janeiro. O desengonçado rodopiar de braços e a vigorosa interpretação consagraram Elis Regina nacionalmente e projetaram, ali, um gênero de espetáculo musical que mudou a cara da MPB a partir de então.
“Foi mesmo uma comoção nacional”, lembra Solano, que tem sua história de vida fortemente marcada pela realização dos grandes festivais. “Fiz o da Excelsior, três na Record, o da Globo de 1972, o da Tupi em 79 e o Festival dos Festivais.”
Não há um grande festival que não tenha sua assinatura. Aliás, a sintonia é tanta que Roberto Talma, diretor geral do Festival da Música Brasileira que a Globo inicia no próximo sábado, não teve dúvidas. Chamou Solano para coordenar todo o processo de inscrições e organização dos grupos que selecionaram as 48 canções finalistas. E o velho mago dos festivais não teve como recusar o convite.
É preciso uma sacudida
“O momento é muito oportuno. A música brasileira está precisando mesmo de uma sacudida. De apostar na ousadia. Felizmente, essa fase de padronização está se esgotando. E tome sertanejo, axé-music, bunda-music, pagode, padrecos-cantores. Os meios de comunicação precisam mostrar o que realmente é a cara musical do País”, argumenta cheio de entusiasmo.
Explica-se tanto otimismo. Para Solano, o sucesso de um festival está nesta fase embrionária, que ele chama de garimpagem. As canções finalistas devem fazer um mapeamento das diversas tendências sonoras, fugir de qualquer sectarismo e principalmente apostar no novo. Seu único medo era o número excessivo de inscrições, que poderia inviabilizar o festival. A proposta foi fazer uma triagem a partir da tecnologia. Só foram aceitas as inscrições de canções gravadas em CD ou DAT. Mesmo assim, houve 23.834 inscrições. Um número absurdo. Foi preciso ouvir isso tudo?
Audição torturante
“Por mais incrível que possa parecer, a tarefa foi relativamente fácil” – diz o hoje tranqüilo Solano. Ele reuniu dois grupos de doze pessoas. Um no Rio e outro em São Paulo. Os integrantes se revezavam, três a três, na audição das músicas. Todos têm grande vivência na área musical. Bastavam ouvir os primeiros acordes, conferir a letra para perceber que ali não havia nada com nada. Dessa forma, foi se depurando as que teriam chance. E, outra surpresa, essas não chegaram a 100.
Para ser mais exato, os dois estados selecionaram um total de 67 músicas com possibilidade de apresentação. E aí se formou um novo colegiado que definiu as 48. Houve um avanço na parte técnica. As produções são bem feitas, com teclados e coisa e tal. No entanto, a temática revelou-se bastante pasteurizada. Tanto faz ser uma música do Piauí como do Rio Grande do Sul, não há diferença.
“É puro modismo”, diz Solano. “Quer dizer: não está existindo emulação, o que a mídia põe no ar é o que fica valendo. Esse troço tem um lado assustador. O pessoal chegou a falar que a audição das músicas era absolutamente torturante. Durante semanas, eles não conseguiam separar sequer uma canção. Era difícil até manter a atenção.”
O painel de 48 canções é bastante variado e Solano aposta suas fichas: há muita música boa. “Todos nós da produção estamos certos de que esse festival vai deixar um residual de grande valor, com novos compositores e intérpretes. Tem, na verdade, um pouco de tudo: MPB autêntica, música regional, valsa, rap, rock pesado, forró. Tem até um samba-enredo. A proposta do espetáculo que o Talma está montando também carrega na ousadia, inclusive em termos televisivos. É natural que haverá aquele que vai dizer: Ah! Mas o Caetano não entrou, o Chico não entrou, o Ivan Lins não entrou. Não entrou e, digo, não era para entrar. Pois, quando eles começaram, eram iguais a esses que hoje estão aí…”
CARREIRA DE JAIR DISPAROU NO FESTIVAL
Até 1966 Jair Rodrigues era conhecido como sambista de um único sucesso (Deixa isso pra lá). A consagração veio ao cantar Disparada
Mais do que um espetáculo de televisão, os festivais de música dos anos 60 eram um acontecimento. Havia um efervescente caldeirão cultural que misturava o conturbado momento político, a revolução dos costumes e, é inegável, uma geração de preciosos talentos prontos a explodir.
“Comigo mesmo foi assim” – destaca o cantor Jair Rodrigues. Embora já houvesse gravado um disco de sucesso, o compacto Deixa Isso Pra Lá, o cantor era considerado, segundo ele mesmo, apenas um sambista alegrinho. Foi no Festival da Record, de 1966, ao defender Disparada, que público e crítica o reconheceram como grande intérprete.
“Ali praticamente começou minha carreira. Eu já vinha na batalha há algum tempo, cantando na noite aquelas músicas fortes de Orlando Silva, Carlos Galhardo, Francisco Alves… Havia feito um disquinho de sucesso. Participava de espetáculos com a Elis Regina. Mas, mesmo assim, o pessoal continuava falando que eu era cantor de uma música só. Ô coisa chata, sô. Foi quando apareceu a música do Téo de Barros e do Geraldo Vandré e, aí sim, o negócio mudou. Disparada é uma das músicas mais difíceis de cantar. Com ela, pude provar minha competência e a partir daí tive momentos bem bonitos em minha carreira.”
Jair faz questão de ressaltar que nos primeiros festivais a competição não era a prioridade. “Estávamos lá para mostrar a nossa música e dar nosso incentivo aos demais concorrentes. A camaradagem e a amizade prevaleciam”, diz. “Todos, inclusive, foram solidários ao Sérgio Ricardo (no episódio das vaias e da briga com a platéia). Não havia qualquer divisão. Queríamos que todos se dessem bem e pronto”, enfatiza.
“Mas, em 67, a coisa pegou. No ano seguinte, foi um horror. Você entrava para cantar e escutava: Uh!!! Fora!!! Sai daí!!! Uma loucura. Enquanto cantava, pensava comigo: que diabo é isso? Falei com meu empresário, o Corumba (da dupla sertaneja Venâncio e Corumba) e disse que não queria mais participar. Como eu, um monte de gente. Mas, éramos contratados e tínhamos que cumprir o contrato. Mesmo assim, em 69 só participei da Bienal do Samba – um festival paralelo, também na Record, só com sambistas. A vencedora foi Lapinha (de Baden Powell e Paulo César Pinheiro) que a Elis cantou magnificamente: Quando eu morrer me enterrem na Lapinha. Calça, culote, paletó almofadinha…” Êta, coisa bonita…”
Sobre o atual Festival da Música Brasileira, o cantor diz que esse tipo de iniciativa é sempre bem-vinda”. Lembra que o rádio e a TV fecharam muitas portas. Quem não está na moda, precisa encontrar espaço por conta própria. E as gravadoras têm muita culpa nisso, sim, senhor. O bom de um festival é que, pelo menos, você fura esse bloqueio. Ele só lamenta que o filho Jairzinho não teve sua canção classificada.
“Pô, me disseram que é porque o festival é para revelar talentos absolutamente desconhecidos. Achei razoável a explicação. Depois vi nomes como o do Chico César, então não entendi mais nada.”
De qualquer forma, Jair vai torcer para que o festival dê certo. Segundo ele, existe uma renovação constante na MPB e esse pessoal precisa de oportunidade. “Quando tínhamos o programa na Record, Elis e eu lançamos mais da metade desse pessoal que está aí”. Em certa ocasião, quando ainda era solteiro, um amigo lhe apresentou um rapaz recém-chegado a São Paulo que precisava de um lugar para ficar uns tempos. O garoto – um mineiro, tímido – hospedou-se umas semanas no apartamento de Jair. Pouco falava, sempre carregando o violão e um caderno. Mas, quando cantava, soltava a voz. Seu nome: Milton Nascimento.
“Engraçado, que aquele caderno ficou um tempão lá em casa, mesmo depois que o Milton foi embora. Um dia passei os olhos pelos rabiscos e lá estavam os versos de Travessia.”
HISTÓRIAS DE SOLANO RIBEIRO, O HOMEM DOS FESTIVAIS
Ele foi um dos mentores da era dos festivais e agora acredita que só mesmo outro deles pode furar o bloqueio das gravadoras e permitir a revelação de talentos da música popular brasileira
Desde 1998 Solano Ribeiro acalenta o sonho de fazer um novo festival de música. Os motivos, diz, estão todos aí. A música brasileira de qualidade, que é nossa maior manifestação artística, sobrevive ocupando os espaços que lhe são possíveis. Há outra vez uma geração pronta para despontar, e é interessante proporcionar essa chance.
De início, levou a proposta à Rede Record. Houve interesse. Buscou-se patrocinador aqui e ali. Quando a coisa parecia que ia, não foi. Então, no ano passado, foi chamado pela Globo para ajudar na série 100 Anos de Música Popular Brasileira.
“Fui lá e falei da minha idéia de fazer um novo festival. Disseram novamente que não havia interesse numa produção terceirizada”. Solano tem uma produtora independente, a VTI. Apesar do ‘não’, teve certeza: deixou a semente de que o momento era oportuno para um novo festival.
Solano recebeu a reportagem do JT e revelou, com exclusividade, algumas especiarias da história dos festivais de MPB, da qual ele é um dos autores e, mesmo sem escrever sequer um verso ou criar um só acorde, um dos principais protagonistas. Aqui, a íntegra de seu depoimento.
O começo
“Os festivais não surgiram do dia para noite. No início dos anos 60, existia uma forte movimentação musical a partir da Bossa Nova, com base no Rio. Em São Paulo havia muita gente fazendo boa música. Então, eu e dois jornalistas, Moraci do Val e Franco Paulino, juntamos esse pessoal no que se chamou Tardes da Bossa Paulista. Participavam César Camargo Mariano, Ana Lúcia, Claudete Soares, Walter Wanderlei, entre outros.
Logo percebi que os encontros despertavam grande interesse e, de repente, poderiam acontecer num lugar maior. Na época, o centro acadêmico do Mackenzie fazia um espetáculo chamado O Fino da Bossa, de muito prestígio, e que trazia o pessoal do Rio. Isso reforçou a idéia de alugar um teatro. Alugamos o antigo teatro de Arena. A primeira apresentação foi um sucesso extraordinário. E aí chamamos esses espetáculos de Noites de Bossa.
Naquela época o Boni (José Bonifácio Sobrinho) me chamou para trabalhar como coordenador de programação da TV Excelsior. Fazia de tudo um pouco, até que surgiu a chance de produzir um programa. Aí levei todo esse pessoal para a TV. Foi o Noites da Bossa Paulista.
A essa altura, o Walter Guerreiro apareceu com o patrocínio das Lojas Eduardo e a idéia de juntar o pessoal do Rio e São Paulo. Chamou-se Primavera Eduardo É Festival de Bossa Nova. Pela primeira vez aparece a palavra ‘festival’. Foi um sucesso e a primeira vez que Elis Regina cantou num teatro em São Paulo…”
Inspiração em San Remo
“Em São Paulo e Rio vivíamos um momento contraditório. Enquanto as rádios insistiam em tocar música brega, havia muita coisa boa acontecendo nos bares e teatros. Continuávamos com os shows no Teatro de Arena e o radialista Walter Silva (Pica-pau) conseguia a proeza de lotar o Teatro Paramont com espetáculos memoráveis como o Dois na Bossa com Jair Rodrigues e Elis. Nas rádios, além de boleros, de vez em quando chegava uma enxurrada de música italiana, especialmente após o Festival de San Remo. Aí bateu a idéia de promover algo semelhante, não sabia direito como.
Ao ler o regulamento, percebi que as gravadoras e as editoras eram as donas do Festival de San Remo. Para nós não interessava. Jamais nossas gravadoras apostariam na ousadia daquela garotada. Então decidi fazer um festival aberto a todos. Foi uma loucura, porque não havia gravações e fizemos a seleção das concorrentes a partir da partitura.
Houve um número muito grande de inscrições. Amílson Godoy, notável pianista, passava a música e a gente conferia a letra. Foi assim que surgiu o primeiro Festival de Música Popular Brasileira, na TV Excelsior, em 1965. Foi um sucesso absoluto. Deu Elis Regina com Arrastão, com uma projeção que foi além das nossas expectativas.
A era TV Record Logo que Elis venceu o festival, perguntei a ela se gostaria de trabalhar em São Paulo na Excelsior. Ela me falou que tudo bem, desde que a proposta cobrisse o que recebia na TV Rio. Levei a proposta para o Edson Leite (superintendente da Exclesior), que respondeu:
— Imagina! A gente não tem nada o que fazer com ela. Meses depois, a Elis estava contratada pela Record por um salário muito maior e status de grande estrela. A carreira dela deslanchou, ganhou um programa semanal, O Fino da Bossa, que depois ficou só O Fino.
Foi um sucesso tremendo que deu à Record uma visibilidade enorme e gerou a Jovem Guarda com Roberto Carlos, Bossaudade com Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro, e outros. A Record passou a ser líder de audiência e a ‘emissora dos musicais’.”
Chico, Vandré & Jair
“A partir desse sucesso, o Paulinho Machado de Carvalho, responsável pela TV Record, contratou o que havia de melhor na praça. No ano seguinte, eu já estava fora da Excelsior e fui convidado para fazer o primeiro festival da Record. Foi relativamente fácil. Havia um cast maravilhoso, os programas estavam em evidência, a audiência lá em cima. E a gente já recebia fitas, o que facilitou a escolha das concorrentes.
Aconteceu de ter duas músicas de absoluto impacto, de autores que estavam em início de carreira e surpreenderam pela grandiosidade do talento: Chico Buarque, com A Banda, e Geraldo Vandré, com Disparada. Foi um espetáculo memorável.
E, olhe, foi uma briga fazer com que Jair Rodrigues fosse o intéprete de Disparada. O Vandré queria cantar. Eu insisti: queria um cantor.
Quem?, ele perguntou. Falei sobre Jair Rodrigues e, claro, ele estranhou. Falou que o cara era sambista e não tinha nada a ver. Mas, a gente via o Jair pelos estúdios cantarolando modinhas sertanejas.
Fiz o Jair passar a música para o Vandré que, ao ouvir, não teve mais qualquer dúvida. A apresentação do Jair Rodrigues também pegou a platéia de surpresa, acompanhado pelo Trio Maraya e o Quarteto Novo, com o Hermeto Pascoal de pianista, o Téo de Barros na viola e Nanini que fez percussão com uma queixada de burro. E deu no que deu.”
Deu empate mesmo
“Especula-se ainda hoje que Chico teria vencido sozinho aquele festival e forçado uma barra pelo empate. Mas não é verdade, embora a tendência fosse mesmo de vitória para o Chico Buarque. A gente fez uma reunião antes da finalíssima, com o júri. E ficou estabelecido que a briga era entre as duas. Mas a decisão viria mesmo após a apresentação, levando em conta a reação da platéia e tudo mais.
Deu empate, que foi o mais justo.”
O melhor dos festivais
“No meu entender, em 1967 tivemos o melhor dos festivais. Havia ali pelo menos seis ou sete músicas com possibilidade de vitória. Ponteio, de Edu Lobo, a vitoriosa. Domingo no Parque, do Gil, que ficou em segundo. Roda Viva, do Chico Buarque, em terceiro. Caetano com Alegria, Alegria, em quarto. E Roberto Carlos defendeu uma música lindíssima, do falecido Luiz Carlos Paraná, Maria, Carnaval e Cinzas, em quinto. A qualidade das músicas era tanta que, por uma cochilada dos jurados, Eu e a Brisa, de Johnny Alf, não passou da fase classificatória.
Mas o que deu tempero ao festival foi a postura mais experimental dos baianos. Caetano adotou as guitarras em Alegria, Alegria e Gilberto Gil também, em Domingo no Parque, que teve arranjos do maestro Rogério Duprat e acompanhamento dos Mutantes. Essas canções ganharam feições revolucionárias, com temáticas urbanas, e mudaram o panorama musical da época.”
As vaias e Sérgio Ricardo
“Curiosamente, foi também o festival que consagrou as vaias. Não surgiram de forma tão natural assim. Na verdade, Jair Rodrigues veio defendendo uma música do Walter Santos e Tereza Souza chamada O Combatente.A gravadora do Jair Rodrigues levou uma pequena torcida e a música não passou para a segunda fase. Aí esse pessoal começou a vaiar quem aparecesse. Era uma coisa artificial.
O que ninguém imaginava era o destempero do Sérgio Ricardo. Ninguém gostou de Beto Bom de Bola. Ele cantou mal. O arranjo era esquisito. Estava tudo torto naquela música. No júri, havia uma facção bastante radical. O jornalista Sérgio Cabral defendeu a classificação da música por denunciar o lado social do futebol. De algum modo, empurrou o Sérgio Ricardo para a final e foi a catástrofe.”
O tropicalismo
“No ano seguinte o festival ficou muito tropicalista. Houve uma forte conotação política. Era notória a desconfiança do pessoal da direita, a censura em cima e a coisa engrossando. O festival de 68 refletiu essa inquietação, sobretudo na forma comportamental. A fórmula do evento foi redesenhada e criou-se o júri popular e o chamado erudito.
As músicas vitoriosas foram São São Paulo Meu Amor, de Tom Zé, e Bem-vinda, de Chico Buarque. Mas já foi uma coisa assim, meio pé-quebrado. Foi o último festival que fiz na Record. Já no festival da Globo, do mesmo ano, a coisa pegou mesmo. O Renato Corrêa e Castro, que era o produtor, me convidou para fazer a seleção das músicas da eliminatória paulista. Só eu e ele.
Aí optamos por uma maior ousadia. Escolhemos a música do Gil (Questão de Ordem), a do Caetano (É Proibido Proibir) e a do Vandré (Para Não Dizer Que Não Falei das Flores). Quando essas músicas foram apresentadas no Tuca, formou-se a confusão. Gil foi desclassificado e Caetano passou para a segunda fase, mas foi quase agredido pela platéia.”
Vandré e o AI-5
“Quando Vandré cantou no Rio, foi outra loucura. Só que aí obrigaram a Globo a não dar a vitória ao Vandré. Ele não poderia ganhar esse festival de forma nenhuma. Quem disse que os militares aprovariam a vitória de uma música que manda morrer pela Pátria a viver sem razão?
Houve uma forçada de barra, sim. E aí venceu O Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim. Aliás, a música possui uma mensagem poética também com forte teor social. É o recado daqueles que estão fora do País, que ainda não estavam oficialmente banidos pelo regime militar, mas que já falavam em voltar. O pessoal também não entendeu.
Vandré fez uma coisa sensacional. Quando foi para o Maracanãzinho, cantou só voz e violão. Foi outro impacto, valorizou os versos fortes e comoveu a todos porque o recado dele era bem mais explícito. Há quem diga até que foi a reação do público à música do Vandré que fez com que os militares recrudescessem e decretassem o AI-5 que aí, sim, fechou de vez. E todo mundo teve que espirrar. Chico saiu do País, Caetano e Gil foram presos e depois saíram. Vandré fugiu… Tenho a impressão de que, se prendem o Vandré naquela época, matavam o cara.
Em 1969, eu me afastei da produção dos festivais e quem fez foi o Marco Antônio Rizzo, que era meu assistente. E eu até digo foi o festival do riso, pois se proibiu até guitarra elétrica. Exatamente para que não houvesse maiores enfrentamentos. Mesmo assim, a música vitoriosa era belíssima. E sintomaticamente se chamou Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, que acabou também supervaiado.”
O fim dos festivais
“Mas, na verdade, o que decretou o fim dos festivais foi um esvaziamento generalizado. De forma e conteúdo. O elenco de grandes nomes da MPB estava fora do País. Havia uma repressão brava. A Globo ainda tentou por dois ou três anos. Mas, valeu-se mais do tom festeiro da disputa do que propriamente da revelação de novos talentos.”
Última tentativa
“Mesmo assim, a convite do Boni, fiz o Festival Internacional da Canção de 72, que foi o último dessa leva dos grandes festivais. Ganhou a fase nacional o Fio Maravilha, do Jorge Ben Jor, interpretado pela Maria Alcina. Tive toda a liberdade para produzir. E o festival teve um residual maravilhoso. Lançou Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Maria Alcina, o pessoal do Ceará (Fagner, Ednardo e Belchior), Alceu Valença…Uma pena que mais uma vez tivemos problemas políticos.
Lá pelas tantas chega uma ordem de que Nara Leão, que era presidente do júri a meu convite, não poderia aparecer na TV. Falei, então, também saio. Aí ficamos naquela conversa horas a fio, procurando uma solução. Lá pelas tantas propus que saísse o júri todo, e não só a Nara.
Escolhemos jornalistas estrangeiros para compor um novo corpo de jurados para ver se alguém da imprensa levantava a questão do afastamento… Foi o que fizemos e ninguém questionou a mudança por motivos políticos. Só chiou o pessoal que defendia a canção do Walter Franco que, na verdade, era uma antimúsica chamada Cabeça. Esse pessoal achou que era manobra para o Walter não ganhar o festival. E passou a criticar a mudança, única e exclusivamente sobre esse prisma… E o assunto morreu aí, e os festivais acabaram implodindo de vez.”
QUANDO CADA EMISSORA TINHA O SEU
Nem só de TV Record viveram os festivais dos anos 60. Acredite! Cada emissora tinha o seu. Embora fosse indiscutível a supremacia das produções da então líder absoluta de audiência, as concorrentes procuravam seguir o mesmo rastro.
A TV Excelsior insistiu em produzir uma segunda edição do festival em 1966. A vitória coube à romântica Portas Estandarte, de Geraldo Vandré. A Globo passou a promover o Festival Internacional da Canção que logo na estréia, em 67, revelou Milton Nascimento, terceiro colocado com Travessia. Mais modesta, a Tupi fazia o Festival Universitário e, posteriormente, a Feira Permanente da MPB, com uma proposta diferenciada.
A maior estrela desses eventos era, na verdade, o diretor Fernando Faro, um inveterado apaixonado por música popular brasileira. Faro era amigo dos cantores e compositores e transformava todos seus programas numa mostra de MPB, com cara de reunião informal. Como é o programa Ensaio que ainda hoje produz para a TV Cultura.
“Os festivais universitários serviram para lançar muitos nomes, mas não consagraram ninguém”, recorda. “Em 69, aquela coisa dos festivais da Record já havia desandado. Então procuramos fazer algo mais leve, tipo roda de amigos. Era uma feira mesmo, com encontros semanais onde tirávamos alguns
vencedores. No fim do mês, escolhíamos um representante para a finalíssima em dezembro.”
Quando a emissora parou com a feira, por falta de patrocínio, quatro canções estavam escolhidas: Cadê Tereza (Jorge Ben Jor), Que Maravilha (Ben Jor e Toquinho), Nada de Novo e Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida, de Paulinho da Viola. Faro estava entusiasmado.
“Quando o Paulo me mostrou a música, fiquei pasmo. E falei: vamos lançar na feira. Ele falou: ‘Não posso. Tenho que lançar na quadra da Portela. Preciso limpar minha barra. O pessoal da Velha Guarda da Portela anda bravo comigo por causa de um samba que fiz com o Hermínio Bello de Carvalho e que chama Sei lá, Mangueira’. Eu disse: que bobagem, lança lá e depois a gente mostra aqui. A gente não podia deixar de mostrar o samba.”
Faro vê com otimismo o festival da Globo. Não que espere a revelação de um novo Paulinho da Viola. Mas acredita que toda movimentação para divulgar a música popular é elogiável.
“Somos um povo essencialmente musical. É certo que não há mais aquela efervescência cultural dos anos 60, mas, hoje, o que importa é absoluta falta de pudor musical. Vamos ouvir tudo e peneirar o que é bom. Existe uma geração pronta para aparecer. Chico César é genial. Os meninos do Mestre Ambrósio também. Temos cantoras notáveis. O Vicente Barreto está na batalha há tantos anos e nunca aconteceu em termos de grande público, apesar de ser autor de Tropicana. Vamos pôr os caras na telinha para ver o que acontece…”
Hora de ousadias
Essa também é a impressão de Wanderley Doratiotto, o Wandi, apresentador do programa Bem Brasil da TV Cultura e integrante do Grupo Premê. Ele sempre ouve dizer que a MPB está em crise. Mas não é o que percebe em seu programa dominical, aberto a todas as tendências.Ele repete o que diz Faro. Há muita coisa boa acontecendo, sim.
“Só que a mídia prefere privilegiar uma produção mais horizontal, mais padronizada. Não aposta nas diferenças, na ousadia.”
Wandi recorda que o próprio Premê só ganhou maior visibilidade em 1979, ao participar do Festival Universitário da Música Popular Brasileira na TV Cultura: ficou em segundo lugar com Brigando na Lua. Quem venceu o festival foi Diversões Eletrônicas, de Arrigo Barnabé. Mas o evento consagrou, pelo menos com prestígio, toda uma geração chamada Vanguarda Paulistana, que incluía Itamar Assumpção, Vânia Bastos, Celso Viáfora, Paçoca.
Neste festival da Globo, o próprio Premê terá o desafio de defender Um Chorinho em Mente, de Laerte Freire, um autor que permanece inédito aos 71 anos. “A música é delicada, bem tradicional e não tem a pegada das músicas feitas para festivais, sempre combativas. Acho que nos escolheram porque o Premê tem esse estilo de ser uma ponte entre o ontem e o hoje. De não perder de vista o passado, mas olhar sempre em frente”.
Nos últimos 25 anos não faltaram tentativas para se reviver o mito dos festivais: Abertura (Globo/75), o da Tupi (79), o Universitário da Cultura (79), a série dos MPB Shell e o Festival dos Festivais (também na Globo). Em 92, a Record produziu o Novo Festival da MPB, um fiasco que não foi além de dois pontos no Ibope.
Carlinhos Vergueiro, Arrigo Barnabé, Lucinha Lins, Raimundo Sodré, Tom e Dito, Jorge Alfredo e Chico Evangelista, Tetê Espíndola, Osvaldo Montenegro são alguns dos nomes de cantores e compositores lançados pelos tais festivais. Todos tiveram seu quinhão de 15 minutos de fama. Há quem diga, porém: para alguns, foi tempo demais.
Matéria publicada no Jornal da Tarde