Certo dia eu quis ser Cassius Clay.
Negro, forte, ágil, brilhante.
O maior de todos os tempos.
(…)
Era garoto, gostava de futebol e por aqui havia Paulo de Jesus e Éder Jofre – mesmo assim, eu queria ser Cassius Clay.
Os jornais e as rádios noticiavam os feitos do extraordinário lutador de boxe. Um assombro de técnica, força, talento e arte.
O pai e os amigos embarcavam euforicamente nesses relatos – e, por tabela, lá ia eu sem me dar conta dos meus limites e da minha proverbial covardia diante do inefável da vida.
(…)
Creio que os caros leitores hão de me entender: na imaginação de um menino suburbano e sonhador tudo é possível.
Não havia transmissões das lutas pela TV – isso se deu mais tarde quando ele já havia se transformado em Muhammad Ali e como Muhammad Ali mudou o mundo e a maneira de muitos a compreender o mundo e suas sutis diferenças.
Mas, aí eu já era um jovem, inquieto por desvendar os arredores – e admirava ainda mais o cara que ousou enfrentar, peito aberto, as verdades mentirosas do Sistema. Que chutou a fama, abriu mão do título mundial por não aceitar a farsa que queriam lhe impingir.
(…)
Seu retorno ao esporte foi épico.
Tanto que o nosso Benjor o saudou no disco “Negro É Lindo”, lançado em 1971, com uma trepidante canção/homenagem:
“Cassius Marcelus Clay
Herói do século vinte, sucessor de Batman
Sucessor de Batman, Capitão América e Superman
Cassius Marcelus Clay, o primeiro
Tem a cadência
De uma escola de samba
E o 4-3-4 de um time de futebol
Salve Narciso Negro, salve Muhamad Ali,
Salve Fighty Brother, Salve king Clay
O eterno campeão na realidade um ídolo mundial
Tem a postura da Estátua da Liberdade
E a altura do Empire State
Salve Cassius Marcelus Clay
Soul brother, soul boxer, soul man”
Aí eu há tinha 20 anos, e entendia o tamanho da encrenca que era a vida e seus percalços.
Passei a ter verdadeira devoção por Ali, o destemido.
(…)
O tempo não perdoa nem sequer o maior dos nossos heróis.
Pois, nem Ali escapou a essa sina.
Como disse, covarde que sou, preferia não vê-lo em suas recentes aparições públicas, devastado pela doença de Parkinson.
Dava-me uma tristeza imensa.
(…)
Certo dia, há coisa de alguns anos atrás, meu filho chegou de uma viagem internacional entusiasmado com um casaco de abrigo que havia comprado não sei em que cidade.
Fiquei curioso, ele não é dado a esses luxos.
Ele, então, me mostrou a vestimenta de malha, um blusão normal, preto. Com a inscrição “I’m The Greatest” em branco e dourado margeando a borda do capuz e no peito em letras enormes: MUHAMMAD ALI.
Entendi, então, que as lendas são indestrutíveis, eternas…