01. Olho nos pés da garotada de hoje e vejo o velho e bom All Star. Sem tirar nem por, absolutamente igual, mais do que um tênis, esse ícone da juventude já era moda no tempo em que Paulo Coelho ainda não cruzava o Planeta como escritor consagrado e só era conhecido pelos versos malucos-belezas que escrevia para o parceiro Raul Seixas cantar. Faça o que tu queres, pois é tudo da Lei, clamava a dupla na letra da anárquica Sociedade Alternativa.
02. Isso foi lá pela virada dos anos 70 e 80 quando os novos sonhos de toda a gente puseram abaixo o Muro de Berlim e nós, sob os trópicos, acalentávamos a esperança da consolidação democrática. Curioso como um simples par de calçado azul turqueza nos pés de um garoto leva-me a essas reflexões. Talvez porque naqueles tempos também os usasse — e como! — e imaginasse que a vida, as pessoas, os sentimentos, a verdade fossem tão simples quanto calçar um velho par de tênis todos os dias.
03. O fim da muralha que dividia a Alemanha, acreditava eu, representava o fim de todo e qualquer preconceito, de toda e qualquer discriminação; o horizonte aberto para a almejada paz universal. Aqui, em terra pátria, o óbvio era que com a democracia bendita também viria, automática e espontaneamente, a justiça social, a igualdade, o fim de todos os males que afligiam os brasileiros. Era por isso que saíamos, ruas e praças afora, caminhando e cantando e seguindo a canção que nos unia e nos fazia melhor.
04. Parecia tão simples, repito. Havia um nítido divisor de águas. Havia o bem e o mal. Quem não era por nós, era contra nós. Simples e prático. O fim do muro e comunismo, que dava sinais de exaustão por toda a Europa, não redimia os governos ocidentais de suas mazelas e fragilidades. Mas, projetava uma nova ordem mundial, embasada na valorização do homem como cidadão. No Brasil, a ditadura era símbolo de todas aflições sociais — e também, aqui, havia claras evidências que não resistiria por muito tempo. Portanto, fazia-se a luz…
05. Era, na verdade, questão de não perder a oportunidade. E, olha, para ser franco, era mais difícil escolher entre um All Star cano longo ou cano curto, da cor vinho ou marinho (havia um cinza bem legal também), do que propriamente imaginar que algo poderia dar errado. Pôxa, essa geração batalhou tanto desde 1968, o ano que não devia terminar. Enfrentou as diversas formas de repressão, fez a Revolução dos Costumes, andou por sonhos e devaneios, Hair e Woodstock, virou o mundo pelo avesso em nome da paz e do amor. Era mais do que hora. Tanto lá como cá seríamos felizes, enfim. Um ousado jingle celebrou vitória — e simplificou demais todas as questões. Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, lembra, caro leitor?
06. As cenas que hoje presenciamos — dos escândalos políticos aos conflitos internacionais — comprovam que, em algum lugar desse passado recente, perdemos o fio da meada da reconstrução social. Trocamos a universalização (que traria embutida a preservação de uma sociedade humanista) pela globalização que privilegia única e exclusivamente o lucro pelo lucro. Trocamos também — e principalmente — a noção de que para se construir esse mundo novo é preciso ser — e não apenas ter.
07. A propósito dessas divagações, leio nos jornais que o novo livro de Paulo Coelho trata exatamente dessa zona difusa que permeia os conceitos do Bem e do Mal. Lá à sua maneira, o mago conclui que não existem anjos, nem demônios. Todos somos produtos das circunstâncias e do tempo em que vivemos. Mas, ressalto aqui, nunca é demais preservar valores como fraternidade, respeito, ética e, sobretudo, o jeito bem-humorado e renovador de andar pela vida — mesmo que já tenha passado sua fase de andar de All Star.
* Não resisti, caro leitor, e postei hoje, com novo nome, um texto que escrevi em outubro de 2000. Chamava-se O Fio da Meada, este mesmo que a gente perdeu e ainda não encontrou. Ao que parece, está cada vez mais difícil de encontrar…