Continuamos hoje com a série
ESQUECER É PRECISO, MAS NÃO É FÁCIL…
… a resposta do amigo Astrogildo Hugo Tadeu Simões à minha desolada pergunta, com a qual encerrei o post crônica de ontem.
— Que é isso? Já que estamos aqui, vamos aproveitar.
E partiu direto para cozinha conferir o que havia de bom na geladeira.
— Astrão, manera. Mal chegamos…
— Só quero ver se tem água gelada. Está muito calor.
Minutos depois, o Astro voltou para sala. Mastigando algum alimento.
Preferi contemporizar. Fiz que não vi. Na verdade, foi essa a filosofia que adotei para os próximos e imprevisíveis três dias. Mesmo naquela tarde ensolarada, enquanto ajeitava minhas coisas, atormentava-me a voz do amigo Formigão, um dos tantos a dizer não ao convite do Astro para “conhecer o Rio de Janeiro”. Antes da viagem, ele me alertara:
— É fria, bicho. Salta fora.
Não o ouvi. Não saltei. E agora estava na fria mais acalorada da minha vida. Sem alternativa. Só me restava contar os dias, as horas, os minutos para a volta a Sampa.
E ainda havia o desafio da via Dutra.
II.
O apartamento não era grande. Mas, super transado. Fazia sentido aquela história de que o próprio Marcos Paulo havia confeccionado os móveis. Um tom despojado e rústico caracterizava a decoração. Eu morava num apartamento básico no Ipiranga, 80 metros quadrados de área útil para desfrutarmos; o pai, a mãe e eu. Claro, achei aquele lugar o máximo.
Talvez por isso fiz outra proposta ao Astro.
— Sua tia está preocupada com o filho no hospital. Vamos ficar aqui no apartamento só o tempo necessário. Dar o menor trabalho possível para ela.
— Você nem precisava dizer. É isso mesmo.
— Depois a gente precisa agradecer a hospedagem e visitar seu primo no hospital.
— Primo? Que primo…
— O Marcos Paulo, Astro. Você não falou que ele é seu primo sei lá de que grau?
— Claro, claro. Vamos, sim.
III.
Preciso dizer que não fomos ver o ator no hospital?
Mas, pareceu-me que a senhora também não fazia muita questão. A bem da verdade, foi gentilíssima com a gente e, cá para nós, conhecia o Astro bem mais do que alguém pudesse supor; diria, de outros carnavais.
Não vejo o Astro há tanto tempo, e que ele não nos leia. Mas não era fácil. Carudo que só…
IV
Todos os dias ela aprontava o café da manhã para gente – e se mandava (provavelmente rezando) para o hospital. Nós saíamos cedo. Voltávamos para um banho rápido no fim da tarde e rua. Quando retornávamos, ela já estava dormindo. E assim foi.
Fizemos naqueles três dias o roteiro clássico dos turistas. Conhecemos as praias. Do Leme ao Leblon. Copacabana. Ipanema. Um dia fomos à Barra. Corcovado. Cristo Redentor. Bondinho (o Astro dava um sorriso sinistro toda vez que aquele treco balançava). Cinelândia. Centro do Rio. Lapa. Nada de grande relevância. Salvo duas ou três observações.
A primeira doeu nas pernas e nos pés. Para economizar a grana da gasolina, usávamos – decisão do Astro – o carro o mínimo possível. O negócio era mesmo no pé-dois. Raramente caminhei tanto em minha vida.
V.
Como conseqüência vem o segundo destaque. Bastaram algumas poucas horas de praia para que eu ganhasse um tom de pele vermelho-melancia, de fazer inveja à recém-promovida espécie de hortaliça. Não sei quem me falou ou onde li uma dessas pesquisas importantíssimas para a história da humanidade. A melancia deixou de ser fruta para, depois de anos de estudos científicos, ser aceita no mundo encantado das hortaliças.
Enfim, devo ter ficado uma graça e absolutamente destoante da cor dos praieiros cariocas. A impressão que tinha era de que todos admiravam a passagem deste ser vivo (?) e quase em pele viva que ora lhes escreve. Olhavam mesmo. Especialmente quando deixava escapar um comentário qualquer.
— Ôrra meu, o Rio é lindôôôô!!!
Falava baixinho. Mas, todos pareciam ouvir e balançar a cabeça com certo desdém.
Vamos ser sinceros. O Astro também estava bem arranjado de amigo.
VI.
Resumo da ópera. Dos três dias que tínhamos planejado ir à praia, só pisei na areia no primeiro, a sexta. Nos outros dois, impossível. Bastava eu sentir o sol no ombro para que a ardência me levasse a procurar a proteção da primeira sombra. Ir a praia de camisa, nem pensar. Quer dizer, nem pensar para mim. Porque o Astro foi. Nessas horas, pacientemente o aguardava sob a marquise de algum prédio, em algum boteco, ponto de ônibus coberto ou qualquer outro fiapo de sombra – vestido da cabeça aos pés.
Entre um “meerrrrmão” (que ainda hoje imagino traduzir do carioquês como ‘meu irmão’) para cá e outro “meuquiurido” (‘meu querido’, óbvio) pra lá, os minutos, as horas e os dias se passaram.
Óbvio que nenhuma “garota de Ipanema” ou do Leblon ou do Leme ou de Madureira se dignou a olhar o Melancia aqui. Óbvio também que as festas com os artistas globais não passaram de folguedos imaginosos do Astrão. Óbvio que no domingo pela manhã quando nos despedimos, a senhora foi gentil e educada. Mas, óbvio também que se mostrava mais feliz do que o costumeiro, mesmo com o filho ainda no hospital.
Ainda lembro a despedida. O Astro todo educado:
— Melhoras ao Marcos Paulo, tia. Dê a ele minhas condolências.
— Recomendações, Astro. Recomendações — corrigi o mais rápido que pude.
Acho que foi o sol que tomamos na cabeça.
— Dê a ele minhas recomendações, tia – consertou ele.
Mas, a tia não se comoveu, foi firme na resposta.
— Da próxima vez, Astro, lembre-se: avise ANTES que vem. Avise ANTES. Vão com Deus! Boa viagem!
VII.
E lá fomos nós enfrentar a via Dutra num Fusca 62.
Não sei o porquê, mas hoje ao narrar essa história e acompanhando as andanças do papa Bento XVI pelo Vale do Paraíba, me veio uma súbita recordação.
Por diversas vezes, em diversos trechos alternados da rodovia — em Pinda, Roseira, Guaratinguetá, Aparecida, Taubaté e até em Caçapava — vi o mesmo policial rodoviário fazer sinal, com as duas mãos, para o Astro maneirar na velocidade. E imediatamente o meu amigo – que não era de maneirar – maneirava, silenciosamente.
Olhe que Deus me perdoe se for heresia. Pode ser o sol na cabeça que, desde então, venho tomando vida afora. Mas, preciso e vou dizer: o policial errante era muito parecido com o Santo Frei Galvão, o primeiro santo nascido no Brasil e canonizado ontem pelo papa.
Vocês não acreditam?
Melhoraria algo se lhes lembrasse o "vão-com-Deus" da senhora? E se eu lhes dissesse que passei rezando as seis horas e meia da viagem? Está bem, concordo, seria exagero dizer que foi milagre.
Mas, o que vocês acham? Sinceramente…