– Deu. Minha cota já deu.
– Ham?
– O que tinha que ser já foi.
– Como assim?
– Nossos melhores momentos, André, são coisas do passado. Vai para o arquivo morto da memória.
– Morto? Quem morreu?
Julinha, a amada Ju, idolatrada, salve, salve, desistiu. Foi para o quarto em passos lentos, arrastados. Antes de trancar a porta, deu a letra:
– Dorme no sofá hoje, dorme. Vai ser melhor pra nós.
– No sofá? Dormir no sofá, por quê?
Julinha, ainda jovem, bonita e cheia de vida, nem respondeu. Entrou no quarto e reapareceu segundos depois com o travesseiro e um lençol nas mãos e, solenemente, os entregou ao apatetado André.
Assinou o momento, com a célebre frase do Poetinha:
– Que seja eterno enquanto dure…
E concluiu:
– Passou, passamos…
(…)
Com os apetrechos de dormir ainda nas mãos, André ainda teimou em não acreditar no que toda aquela cena deixará explícito.
“O que deu nessa maluca? ” – pensou, e logo se corrigiu, imaginando que Julinha, a amada Ju, tivesse o dom de ler pensamentos e, aí sim, o caldo entornaria de vez:
“O que deu nessa mulher? O que foi que eu fiz?
Dispensou travesseiro e lençol, largou-se no sofá para um involuntário exame de consciência. Era um homem bem-apessoado, trabalhava 12 horas por dia, assistia seu futebolzinho pela TV, bebia socialmente (“por falar nisso, vou preparar um cowboy para esquentar o peito”), não tinha vícios: manias, algumas poucas e raras (esquecia a torneira aberta do banheiro todos os dias e a Julinha achava péssimo esse descuido), era metido a meninão, mas …
O que deixou a mulher amada nessa vibe?
Pensou, repensou.
Não chegou a qualquer conclusão.
(…)
Dormiu de copo vazio na mão.
Sono pesado, lavado e enxaguado no desassossego, e, lá pelas tantas, enfrentou um pesadelo daqueles. Imaginem o Compadre Washington (aquele do Tchan que ele tanto detestava na fase áurea, agora e sempre) a lhe assombrar, com cara de deboche, e a dizer:
“Sabe de nada, o inocente”.
Mesmo anestesiado pelo sono, sentiu o coração acelerar e o peito arder.
A voz se fazia a cada segundo ainda mais ameaçadora:
“As mulheres mudam e esquecem de nos avisar. ”
Pior do que a frase, foi o riso escancarado que a acompanhava…
(…)
Acordou assustado. Madrugada alta. Zanzou pela sala à procura do interruptor para clarear a sala e as ideias.
Precisar respirar, beber uma água, sei lá.
Tateando no escuro, apoiou-se em um aparador e sentiu seus dedos tocarem tocar num papel com textura diferente, uma espécie de filipeta.
Acendeu as luzes – e de imediato foi ler o que era.
Fim do mistério.
Tinha agora nas mãos uma passagem, só de ida, para Salvador. A viagem estava marcada para 19 de fevereiro, domingão, uma semana antes do carnaval.
A quem pertencia aquele bilhete?
Estava ali escrito:
A Maria Julia de Albuquerque, o nome de solteira de Julinha.