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Bermuda e chinelas *

Decididamente este mundo não tem mais salvação.

Pois vejam, meus caros cinco ou seis amáveis leitores: hoje em dia, não há respeito sequer a um pacato cidadão de bermudas e chinelas que, na manhã de um prosaico domingo de sol ameno, vai logo cedo à padaria comprar o pãozinho nosso de todos os dias.

Não é que o pessoal do balcão da ‘marvada’ já fazia ponto no local antes das 8?

Não sei se emendavam a manguaça de ontem ou se inauguravam, cheios de vontades, o domingão em que se encerra o Brasileirão.

O vozerio estava lascado.

Os ânimos, eu diria, exaltados.

O simpático Portuga até saiu daquele cubículo, onde fica no caixa, para pedir calma e abaixarem o tom.

— Ora, pois, pois, este é um estabelecimento de família. Até professores universitários temos na fila do pãozinho…

Por que o homem falou isso?

Todos os domingos levo um punhado de moedas – que junto durante a semana – para, assim, lhe facilitar o troco.

Não merecia essa trairagem…

II.
Quando dei por mim, já estava rodeado de amigos – não sei se é a palavra certa, mas vá lá…

Queriam que eu fosse o mediador de uma mesa-redonda que improvisariam ali mesmo, ao redor do balcão de mármore fajuto.

Fui logo me esquivando, e querendo agradar a gregos e troianos, palmeirenses, sãopaulinos e corintianos:

— O Flamengo já é campeão. Cartas marcadas, pessoal. O Grêmio vai entregar. Interessa à CBF, interessa a Globo, interessa ao Brasil da Copa de 2014, das Olimpíadas de 2016…

Bobagem minha. Não era esse o assunto da discussão.

Discutiam qual a melhor forma para o Campeonato Brasileiro.

Pontos corridos ou mata-mata.

Sorri amarelo e, sem outra alternativa, me dispus a ouvi-los.

III.
O Portuga, dono da padaria, me olhou agradecido. Até liberou uma média com pão na chapa para abrandar o meu jejum e melhorar o juízo da minha decisão.

O primeiro a falar foi o Sr. Nestor, que me apresentaram naquele momento e era porta-voz dos que defendem o ‘mata-mata’.

— Trata-se de uma forma que garante a emoção até o último instante. A partir de agora, teríamos apenas jogos decisivos, com estádios lotados, envolvendo as maiores torcidas do País. Até o meu Corinthians poderia entrar nessa. E tem mais. Precisamos entender que o futebol é negócio. Um dos mais rentáveis do mundo. Só aqui no Brasil os clubes estão de pires na mão. Imagine, professor, o quanto essas finais não renderiam? Um dinheiro que se joga na lata do lixo com a fórmula atual. Concorda? (E eu em silêncio, olhar de paisagem) Além do que, evitaríamos a vergonha dessas rodadas finais com times de tradição fazendo corpo mole para que o rival de seu Estado não seja campeão. Vocês acreditam que os jogadores do Grêmio vão correr atrás da bola hoje no Maracanã? Se derem o campeonato para o Inter, nunca mais colocarão os pés no Rio Grande do Sul. É o que eu penso. O que o professor e jornalista, amigo que acabo de conhecer, acha?

Olhei para um lado, olhei para o outro. Pedi outra média, dispensei o segundo pão na chapa e dei meu veredicto. Simples e direto, como deve ser o veredicto de um homem sábio:

— O senhor Nestor está com a razão!

IV.
Aplausos, vaias. Comemorações e lamentos.

Não sabia. Eles haviam apostado um engradado de cerveja.

Em meio ao tumulto, o Portuga saiu outra vez da birosca e pôs ordem na casa:

— Professor, o senhor só poderia manifestar sua opinião depois de ouvir o outro lado.

— Estou aqui para ouvir a argumentação contrária, falei. – Que fale o arauto pela defesa dos pontos corridos…

Acho que os impressionei com a minha fala solene. Não é todo o dia que se ouve a palavra ‘arauto’ tão bem empregada, convenhamos.

V.
Fez-se, de novo, um silêncio respeitoso – e um tal de Gigante deu um passo a frente. Pelo apelido, dá para imaginar o tamanho do ‘armário’, mas não para descrever as feições de ‘justiceiro indomável’ do homem. Que falou com voz de raros amigos vivos e alguns inimigos mortos:

— Vou ser simples e objetivo. Estamos falando do esporte mais popular do mundo. Esporte é também negócio, mas não é só negócio. É preciso dar valor aos critérios esportivos. O campeonato de pontos corridos é o mais honesto que existe. Quem faz mais ponto é campeão, e pronto. Dispensa fórmulas mágicas e recompensa aquele que foi o mais regular em todas as rodadas. Esquemas, jeitinhos, marmeladas existem em qualquer tipo de competição. Alguém duvida? Vou dar um exemplo. Se o Grêmio precisasse perder para o Inter não chegar ao oitavo lugar e, assim, supostamente pegar uma beirinha na final, a situação não seria a mesma, hein? Hein? O que o professor e jornalista me diz agora? Qual sua opinião?

Sou um homem de coragem, e convicções.

Disse sem delongas:

— O senhor Gigante está com a razão!

VI.
Urros. Esperneios. Assovios e uma confusão generalizada.

A turba ameaçava partir para as “vias de fatos” quando o Portuga se fez outra vez presente – e ameaçou expulsar a todos, inclusive a mim, “do respeitável estabelecimento que garante o pão nosso de todas as famílias da Vila Planalto”.

Naquele momento, aliás, eu era o alvo maior da sua ira:

— Muito bonito, hein, professor. Dou-lhe meu voto de confiança para que acalme os ânimos desses energúmenos. Que lhes diga palavras sábias – e lhes devolva à razão…
E o que senhor me apronta? Quase me coloca a padaria abaixo com sua brincadeira de mau gosto. Onde já se viu? O que o senhor me diz, ó, pá? Se posicione uma vez que seja. Diga lá o que pensa. Coragem…

Peguei os meus pãezinhos, olhei tudo aquilo. Aquelas expressões, a ansiedade de todos. Medi bem as palavras e fui sincero e eloqüente, como poucas vezes me arrisquei a ser na vida:

— O senhor Portuga está com a razão!

VII.
Desde o gol legítimo do Obina que aquele juiz treteiro anulou, quero mais é que o campeonato brasileiro se exploda. Ademais, há que se respeitar a santa paz de um domingo de um senhor de bermuda e chinelas.

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