Para Fabi, que leu antes
e achou divertido…
I.
Era um hábito antigo:
o de falar sozinho, em voz alta,
quando está ao volante
do velho Santana prata.
Chega até a gesticular e, não raras vezes,
altera-se nesse bate-boca dele
para com ele. Quer dizer, há sempre
um interlocutor imaginário, como
se estivesse ali, no banco do passageiro.
Pode ser alguém que lhe seja caro, querido
mesmo, a precisar de bons conselhos.
Ou então a discussão é séria, pra valer,
com adversários momentâneos
que lhe propõem polêmicas transcendentais:
a mesa redonda esportiva de ontem
ou o que escreveu o Cony na coluna de hoje.
É bem verdade que, via de regra,
os desafetos se dão por vencidos e
reconhecem seus argumentos inabaláveis…
II.
Era o que fazia naquela manhã
de sábado. Dirigia-se para o trabalho –
quer dizer, não para o trabalho; mas,
uma dessas reuniões fora do expediente
em que, sabia de antemão, ouviria
tudo o que o supervisor seria obrigado
a dizer em nome da empresa.
Assim que ganhou a rua, porém,
o aborrecimento deu lugar à curiosidade.
Em frente ao prédio onde mora,
viu um rapaz a ajeitar, na caçamba
de uma dessas picapes pesadonas,
as tralhas de quem iria surfar.
III.
Foi o suficiente para lembrar de Bia,
a surfista misteriosa que, vez ou outra,
aparecia no escritório, atrás do pai,
o bendito supervisor. O ‘velho’ se
derretia pela moça, aí pelos seus
20 quase 30 de fina estampa.
— É um belo ‘pedaço’ essa minha filha, não?
Na repartição, os marmanjos concordavam,
mas silenciosamente. Com um breve
balançar de cabeça. Temiam se indispor
com pai tão zeloso e chefe tão imprevisível.
Lembrou a cena e logo achou de incluir
a loira – sim, porque Bia era loira – no grupo
das pessoas que lhe eram queridas – e,
num instante, a moça tomou
assento ao seu lado. Magia, encantamento,
imaginação. Ele não soube explicar,
mas ficou feliz pra caramba.
— Alucinação ou não, é bom vê-la
por aqui, disse com o coração a mil.
IV.
Lembrou que, noite dessas,
encontraram-se num desses chats
de bate-papo – ou seria no msn? Conversaram
amenidades. E sequer se despediram.
De qualquer forma, começou
a conversa por aí: o sim e o não
da ‘virtualidade’ nossa de cada dia.
— Será que essa manifestação resiste,
em muitos casos, porque se vale da proteção
estratégica da telinha e do liga e desliga
que o computador permite?
Sua pergunta ficou sem resposta,
pois a surfistinha – que não era a Bruna –
não estava mais ali, ao seu lado. A bem da
verdade, sabemos todos, ela nunca esteve…
V.
Ele não queria perdê-la.
Então, então foi ao seu encontro.
Frações de segundos…
Imaginou ela e o mar, tipo filminho.
Confirmou: estava apaixonado!
A partir daí, desarvorou-se num delirio.
Viu-se numa dessas praias do Litoral Norte
e discretamente notou que ela
também acabara chegar.
— Cheguei a tempo, parabenizou-se.
VI.
À essa altura, o carro, como podem
perceber, seguia no piloto automático.
— Que lindeza!
Bia vestia aquela roupa estranha, justa,
emborrachada, colada ao corpo;
de pele queimada e pelos claros.
— Meu Deus!
Ela cortou a areia, praia adentro,
rumo ao mar. Suas pegadas deixavam
um rastro sinuoso, como um convite
para que ele a seguisse…
Conteve-se, porém.
Também pudera…
Estava de camisa, jeans, sapatênis.
Enfim, a roupa com que ia para a reunião.
Rápido, pegou o óculos
de sol para disfarçar…
E, percebam, nem estava
esse sol todo, não…
* As desventuras do nosso
herói sem nome
continuam amanhã…