Quando eu lá cheguei numa tarde qualquer de janeiro, a fama do homem já corria solta e logo chegou aos meus ouvidos. Tratava-se de um magnata espanhol, provavelmente um empresário excêntrico. De idade incerta e ares circunspectos. Todo mês ele aparecia pelo charmoso Hotel de San Polo, na cidade de Salamanca. Ficava um, dois dias – e, tão silencioso quanto chegava, partia sem maiores explicações.
Havia um tom de mistério que a todos instigava.
Diziam que o hospede vinha ‘pagar’ uma promessa, pois passava horas a caminhar pelo que restou da igreja de San Paolo.
Preciso lhes explicar.
Este hotel foi construído no espaço onde existiu o templo que desmoronou lá nos antigamente. Num oportuno projeto arquitetônico, parte dessas ruínas foi preservada e está acoplada ao estabelecimento em forma grande área livre que, em dias ensolarados, serve de terraço para os hóspedes.
Acrescente-se que o piano-bar e a cafeteria do hotel têm saída para o local.
Aliás, foi por uma dessas portas que vi o tal entrar a escapar dos rigores do inverno espanhol na manhã seguinte.
Intui que fosse ele.
Intui também que talvez eu estivesse a ponto de desvendar o propalado mistério.
Não era uma questão religiosa.
Não eram questões de trabalho.
Menos ainda eventuais lembranças de quem ali viveu nos tempos de estudante (afinal, a cidade tem uma das mais tradicionais universidades européias).
Lembrei dos ensinamentos do amigo Nasci na velha redação de assoalho de tábuas largas. Quando algo não se encaixava como seria o natural, ele diagnosticava:
— Esse chão pode afundar agora, se eu estiver errado. Tem mulher na parada.
Desconfio que a redação permanece lá ainda hoje.
Ele não errava.
Particularmente, também apostei nessa linha de investigação.
Um romance clandestino. Me preparei para ver surgir uma bailarina flamenca. Ou mesmo a insinuante mulher de algum toureiro. Sei lá…
No entanto, tudo clareou rapidinho. Bastou observar o modo “pidão” com que o senhor olhou para a moça da cafeteria ao solicitar “um expresso na mesa”. Sentou-se num lugar estratégico – ainda a olhá-la – e esperou, digamos, esperançoso, que ela fosse servi-lo.
Não lhe tirei a razão na hora – e agora..
A bem da verdade, era uma mulher bonita, de traços finos, que lembrava a atriz Penélope Cruz quando mais jovem. Tinha um jeito simpático e o uniforme marinho lhe caía super bem. Era obviamente uma moça elegante. Só o não abotoar o primeiro botão da blusa já lhe dava um toque todo especial e quebrava toda a rigidez da roupa de trabalho.
Fazia jus a atenção que, indiferente, recebia.
Para ser franco, estou certo que nem ela se dava conta da situação.
Continuava por ali a organizar copos e talheres, a cuidar do balcão, a tirar o café do homem que, de resto, mostrava-se embevecido, apaixonado.
Tão embevecido que se assustou ao ouvir o som da sineta que ela própria fez soar.
Logo apareceu um latino gorducho – para mim, era boliviano – envergando um smoking de garçom, cabelo negro penteado todo para trás, endurecido à base de gel.
Reparei que ele também era só sorriso para a moça.
Não disse palavra. Pegou a bandeja e foi servir o magnata. Que não gostou nada, nada da troca. Aliás, me pareceu gostar menos ainda dos trelelês que os dois – o boliviano e a moça – engataram. Estava implícito na conversa um alegre jogo de sedução.
Que desconforto.
Vi o homem tomar seu expresso rapidamente e, me pareceu, algo contrariado, sinceramente entristecido.
Notei até um olhar de desconsolo naquele próspero empresário. Coisa passageira é verdade. Mas, tenho certeza: ele daria todos os euros do mundo para estar, mesmo que por instantes, na pele do boliviano gorducho, prestes a cair nas graças da morena que lhe era inacessível…