Quando pai chegou, trouxe na mão um cartão de visitas, além do Diário da Noite dobrado embaixo do braço. Era costume do velho almoçar em casa todos os dias. Quase um ritual o seu chegar.
— E aí? A bóia está pronta?
Enquanto a mãe corre para por a mesa e servi-lo, ele lê as notícias. Depois, almoça rápido, tira um cochilo e só aí volta para a tecelagem.
Naquela segunda-feira, porém, tem uma novidade, jurada e sacramentada pelas letras miúdas e finas, impressas sob o nome de um tal Orlando Pelegrino.
Ao ler aquilo, o menino – o caçula da casa – hesita em acreditar. Aquele cartão tem o escudo do time do seu coração – a Sociedade Esportiva Palmeiras – e a designação, lida e relida:
Diretor de Futebol.
Será verdade?
— Amanhã é o dia. Procura o homem no Parque Antártica. Depois da escola, claro.
Nem um comentário sequer a mais.
O pai é assim.O chamam de calabrês. Um homem rude, de poucas palavras.
O menino se alvoroça. Era tudo o que ele queria. Iria fazer um “teste” nas equipes amadoras do time do coração.
— Agora guarda isso e vamos comer.
Pega o cartão sob um copinho de cristal na cristaleira. Olha o pai lendo As 20 Notícias, de Antônio Guzman, o colunista esportivo da época. Sente o coração bater diferente, acelerado.
Tem 13 para 14 anos e todos os sonhos do mundo.
II.
Se tiver abaixo de 50, o caríssimo leitor não pode imaginar o que tal oportunidade significava para qualquer garoto em meados dos anos 60.
Posso dizer, por experiência própria, pois sou dessa geração.
Só para efeito de contextualização.
O Brasil era bicampeão do mundo. Mas, não era só bicampeão do mundo. Era o melhor. Aqui se praticava o futebol arte.Tempos de Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos & Cia.
Jogávamos futebol o dia todo. Fosse com bola de meia, de borracha (o terror das vidraças da vizinhança), de capotão. Na calçada (improvisando o poste como trave), no terreno baldio (que logo se transformava num campinho irregular), no barrancão do Jardim da Aclimação (com dimensões próximas a um campo oficial)…
Havia campeonatos entre ruas que os meninos organizavam e, nos fins de semana, era de lei. Defendíamos o infantil ou juvenil de alguma gloriosa equipe varzeana em partidas disputadas, que valiam nossa alma e repercutiam elogios e críticas por toda a semana.
Nem gosto de lembrar. Dá uma saudade danada…
Bater um bolão era sinônimo de status social, prestígio entre a rapaziada.
A geração do vídeo game e da ‘escolinha’ de futebol viria muito depois.
Ah… Sei o que vocês vão dizer. Havia outras brincadeiras. Empinar pipas, bolinha de gude, jogo de botão (que hoje é futebol de mesa), peão, bater figurinha, carrinho de rolemã etc etc.
Concordo. Mas, faço uma ressalva.
Eram passatempos até a bola chegar…
Assim que a bendita se apresentava, não havia como alguém resistir.
Lembro que onde eu morava, na República Federativa do Cambuci, alguns garotos foram recomendados para treinar no Clube Atlético Ypiranga, um dos fundadores da Federação Paulista de Futebol. Só essa indicação já lhes valeu olhares de admiração e respeito. Imaginem o que significava passar pela ‘peneira’ da gloriosa Sociedade Esportiva Palmeiras.
Preciso dizer?
Nesta noite, o garoto não dormiu…
III.
Antes mesmo que o pai o acorde como fazia todos os dias, o menino está de pé, uniformizado para as aulas da manhã do Colégio Nossa Senhora da Glória. O pai entende o motivo — mas, como de costume, nada diz sobre o assunto.
— Tome logo o café. Hoje você terá um longo dia.
As aulas do Irmão Fidélis passam modorrentas. Mal o moleque se dá o trabalho de anotar o ponto do dia. Olhos fixos e sonhadores no lento caminhar dos ponteiros. Conta os minutos no enorme relógio pendurado na parede logo acima dos retratos do Sagrado Coração de Jesus, da Virgem Maria e do então Beato Marcelino Champagnat. O professor nota a ausência, digamos, espiritual do garoto e, em várias ocasiões, chama sua atenção.
— Em que mundo você está, rapaz?
Ele não prefere não dizer. Imaginava-se no gramado do velho Palestra Itália a desarmar atacantes, a dar carrinhos, a cabecear todas as bolas que alçassem sobre a área… Ali está o verdadeiro anjo da guarda da defesa. Gosta de ouvir os mais velhos dizerem que é um zagueiro de recursos técnicos limitados, mas vigoroso e implacável.
(Aliás, foi essa fama que convenceu o diretor do Palmeiras a falar com o pai do moleque sardento e decidido. Dr. Orlando, como era conhecido, tinha o filho estudando na mesma escola e, ao participar de uma solenidade religiosa na manhã de domingo, ficou para ver a seleção do Colégio. No jogo, o garoto se sobressaiu. Não era o melhor do time. Mas, tinha uma vontade…)
Depois das aulas da terça, o menino mal almoça. Troca o uniforme da escola por uma roupa comum, embrulha as chuteiras gastas num saquinho de pão e vai para o ponto de ônibus esperar o Fábrica-Pompéia. A linha passa em frente aos portões do Parque Antártica. O pai deixou o dinheiro da condução sob o rádio da sala. É sua forma de dizer “força, filho”.
Era um homem de poucas palavras, como disse.
Um tanto descompensado, o garoto anda rápido e torce para que o ônibus chegue logo. Não contou para nenhum amigo a novidade. Quer lhes fazer uma surpresa. Será a notícia do ano na rua Muniz de Souza e adjacências.
Também se não der certo, não precisa “inventar” qualquer desculpa…
Que triste! Mas, pode acontecer.
Trata de tirar essa idéia ruim da cabeça.
Enfim, agora é com ele…
IV.
Um arrepio corta sua espinha.
E ele sente o corpo suar.
Sorte que o ônibus chegou.
Bem…
Deixemos o menino ao sacolejar dos sonhos e do Fábrica Pompéia.
Enquanto isso, vamos conversando.
Só para que tenham uma idéia. Àquela época, se juntassem dez garotos para um racha, seguramente nove sabiam o que fazer com a bola. Dois ou três eram acima da média. Os chamados “bons de bola” – dribladores, queriam a redonda só pra si, faziam a diferença. O que significava dizer: ganhavam o jogo. Aquele que não tinha intimidade para jogar com os pés, inevitável: ia para o gol.
O menino aí, que agora desce bem diante do estádio, se situa ali, na zona do agrião. Não é craque. Mas, não faz feio. Na hora do vamos ver, melo na área e coisa e tal, dá um bico para frente. Bola pro mato que o jogo é de campeonato.
È titular da zaga da seleção do Colégio Nossa Senhora da Glória nos domingos pela manhã, após a obrigatória missa das oito. Mas, aos sábados, brinca nos times de várzea da região. Estrelas dos Boêmios, Santos do Cambuci, Huracan da Várzea do Glicério, entre outros. Aqui, o bicho pega. Não há o tal nivelamento por idade como acontece no Glória. Ele joga no “segundinho”, mas quando alguém do “primeiro” falta, faz jornada dupla. Completa os titulares na base da garra e dos chutões.
Pois então…
Bobo ele nunca foi. Às vezes, se faz de perdido, nem aí e tal. Mas, os 45 minutos do trajeto entre Sacomã e a Pompéia, ele gastou ruminando essas idéias. Lembrou que o Nescau (um dos craques da rua) não passou da primeira ‘peneira’ e que o Bú (um zagueiraço de 16 anos) também ficou pelo caminho no treino do São Paulo. A única vantagem foi um par de meião de lanzinha branca (beje) que lhe "deram" e ele mostrava a todos como um grande troféu.
Hesitou.
O que me parece, hoje, natural para um garoto da sua idade, com um par de chuteirinhas chinfrins embrulhado num papel de pão…
V.
Não sejamos rudes com ele no capítulo final da história. Nos portões do Parque Antártica, com um par de chuteirinha chumbrega embaixo do braço e todos os sonhos do mundo na cabeça, as pernas do garoto bambearam. Lembremo-nos que tem entre 13 e 14 anos.
Está sem graça de tudo.
Tenta avançar os 20 metros que o separam da entrada principal e as ditas-cujas agora pareciam pesar uma tonelada. Estranha o início de pânico. É provável que tenha pensado:
"O que está acontecendo comigo?"
Tal pensamento é seguramente esquartejado pelo baticum descompassado do coração. Alguns garotos mais fortes e maiores o ultrapassam. Andam céleres e em grupos. Todos se conhecem e conversam em alto e bom som. Brincam, riem. Atravessam o portão na maior. Dão boa-tarde ao porteiro e somem engolidos pelo grande portão de ferro. Devem ser os afortunados jogadores das equipes amadoras do Palmeiras.
Tudo o que ele queria ser.
Tentemos entendê-lo, gente.
Os olhos turvam – e a realidade se faz magnânima a três passos da entrada, onde o mesmo senhor de terno azul marinho e quepe, que sorrira para os garotos, agora lhe olha desconfiado.
Não tem chance. Arrasta-se para chegar à portaria. Se está assim agora, imagine o vexame que daria em campo?
Balança a cabeça a espantar suas inquietações.
Mesmo assim caminha e enfrenta a grandeza do momento.
Diz baixinho para ele mesmo, mas com muita fé.
— Seja o que Deus quiser…
Tira do bolso o cartão amarfanhado, mostra para o homem a balbuciar palavras desconexas.
— Eu… teste… infantil… O doutor Orlando falou…
Já está no meio da catraca, super sem jeito, quando ouve a voz do porteiro.
— Pode voltar, garoto. Pode voltar. O infantil só treina na quinta…
Querem saber? O garoto sentiu um baita alívio.
Vá entender…
No dia seguinte, ainda está sob o topor da aventura vivida. Mal sabe ele que viverá uma sensação idêntica: um misto de alívio e decepção.
O pai chega com o Diário da Noite debaixo do braço. Vem almoçar e traz um risinho divertido sobre o bigode aparado e fino.
Abre o jornal na página de Esportes e mostra a manchete ao filho.
“CAI O DIRETOR DE FUTEBOL DO PALMEIRAS”
Ou seja, aquele cartãozinho, na ordem das coisas, não vale mais nada. É o fim da sua carreira de boleiro profissional. E o início de outra. No fundo, nem ligou. Aprendeu. Vale mais a versão do que fato em si.
A todos os garotos da rua, mostra o cartão do homem e a manchete do jornal, acompanhados da mesma fala:
— Olha aí, rapaziada. Vejam o azar que eu dei. Já estava tudo certo para eu ir jogar lá, no Palmeiras.
Quem diria…
O menino virou ‘contador de histórias’ e boleiro nas horas vagas. Sempre a lembrar o dia em quase foi contratado pela gloriosa Società Esportiva Palestra Itália…