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Borges

O recado era simples – e objetivo.

Deveria estar na redação da Revista Afinal antes das 17 horas. E mais não disse a voz do editor Sérgio Vaz do outro lado da linha. Corria o mês de junho do ano santo de 1986 e a informatização das redações, em Terra Brasilis, passava distante dos projetos e planos das empresas de comunicação. Nem mesmo o dinossáurico fax era cogitado. Portanto, tudo o que imaginei era passar no prédio antigo da rua Maria Antônia, pegar minha pauta – sempre modesta de frila – e cair fora. No dia seguinte, começaria a fazer os contatos para as entrevistas e só depois pensaria no texto. Teria a noite livre para alguma andança lúdica em São Paulo, onde amor é imprevisível como eu, você e o céu…

Para efeito de esclarecimento, pois ninguém no mundo está obrigado a saber. A Revista Afinal foi criada no início dos anos 80 para ser uma alternativa à semanal mais vendida do País, ainda hoje é assim, a Veja da Editora Abril. A revista Visão -de algum punch – nos anos 70 saíra de circulação – ou estava prestes a. E IstoÉ perdera seu idealizador Mino Carta e também andava à deriva. Um grupo de empresarios resolveu apostar numa revista de linha editorial mais solta – quase quase um Época, eu arriscaria. Para tanto, fez uma limpa nas redações dos jornais paulistanos e arrebatou o que havia de melhor na praça. Inclusive o editor-chefe Fernando Mitre que até então comandava o mais combativo jornal do País, o Jornal da Tarde.

Como o projeto não deu caras de que iria vingar – as vendas e o apelo publicitário não atingiram os índices almejados -, o inevitável inevitou-se: começaram as dificuldades – entre elas, os salários atrasados e os rumores de que, a qualquer momento, a brincadeira poderia acabar. Inevitável também foi a debandada gradativa, mas efetiva, dos principais nomes. Nessa brecha, começou a aparecer espaço para free-lancers, como o papai aqui…

E aí voltamos para o início da história. Que para ser mais prático, resumo agora: meu bate-e-volta acabou frustrado. Mal entrei na redação, com um boa-noite que, como era praxe, ninguém respondeu – há como questionar o mau-humor de quem não recebe em dia? -, Vaz me abasteceu com três pastas de recortes variados sobre a vida e a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges.

Borges acabara de morrer e eu deveria fazer um texto de duas páginas para ser entregue na manhã seguinte.

— Mais tardar ao meio-dia, lembrou o generoso editor.

Como pouco ou quase nada sabia sobre o homem, dei um muito prazer à papelada, prometi orar por arquivistas tão competentes e escarafunchei-me naqueles textos noite a dentro e parte da madrugada. Quando o dia ameaçava despontar o texto estava nos trinques – e posteriormente selecionei-o para constar da coletânea que lancei em 97, Às Margens Plácidas do Ipiranga, também aqui postado.

II.

Ao longo de toda sua existência, Borges revelou-se uma personalidade contraditória, surpreendente. Dono de uma vasta obra, hoje traduzida em 20 idiomas, foi aclamado internacionalmente como um dos expoentes do realismo fantástico. Chegou mesmo a ser comparado a Cervantes – o principal nome da literatura em idioma espanhol.

Morreu aos 86 anos, ao lado da ex-secretária e esposa Marisa Kodama, na cidade de Genebra, Suíça, onde viveu a infância e a juventude.

Sua obra de 41 títulos abrange poesia, narração, ensaio e ficção. Borges foi também um mestre na arte de condensar todo o pensamento numa só frase, ou duas. Com humor, ceticismo e pitadas de lirismo.

III.

Vejam alguns exemplos do que aprendi naquela noite
– e depois lendo seus livros. Poetar e viver:

“Um destino literário não seria o melhor,
mas o único para mim”.

“A poesia é um hábito eterno que não
precisa inspirar-se na realidade externa”.

“Agora sei que a felicidade pode acontecer
a qualquer momento. Mas que
nunca poderia ser buscada”.

“A tristeza é inevitável,
mas não é vantajosa”.

“Talvez possa falar do que não tenho.
Da prudência e sabedoria que não tenho”.

“Não gosto do que escrevo.
Gosto do que os outros escrevem”.

“Não pretendo compreender meu país
como não pretendo entender a mim mesmo”.

“Nunca vi um latino-americano.
E ninguém se apresenta a mim como tal”.

“Mais grave do que a ruína, do que a derrota
na guerra, é a decadência moral”.

“São poucos os políticos que sabem
fazer política. Mas, quando um intelectual
tenta entrar nesse meio, então é o fim de tudo”.

“A cegueira influiu, sem dúvida, em minha obra.
Mas, não influiu no amor”.

“Ninguém entende as mulheres, tampouco eu”.

“Espero que a morte seja total.
Tenho a esperança de ser totalmente aniquilado”.

“Temo que a qualquer momento
as pessoas se dêem conta de que
me superestimaram. Serei, então, esquecido
ou, pior, tratado como um impostor”.

“Você pode tudo nesta vida.
Só não pode se fazer infeliz”.