"O que faz um povo são os pensamentos daqueles que o compõem" (Rubem Alves)
01. É certo que jovens sempre serão aqueles que acreditam e sonham. Mas, naqueles delirantes final dos anos 70, tínhamos pouco mais de 20 anos, um punhado de ilusões e a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, com a redemocratização do País, correríamos céleres para a solução de todos os chamados males sociais.
02. Era janeiro, se não me engano; pois estávamos de férias numa pequena cidade do interior de São Paulo. Todas as noites o bando de rapazes, de diversas procedências, reunia-se na casa de um e outro para a cerveja e o churrasco de praxe, as conversas sobre futebol e romances e uma generalizada cantoria embalada pelo violão de um caboclo mais talentoso.
03. Acredite, caro leitor: à época não havia axé, pagode e a praga do videoquê. Por incrível que pareça, as músicas de então falavam de sentimentos, lembranças, sonhos e — a geração de agora deve se espantar — não tinham a cadência de um bate-estaca e nem nos ensinavam onde por a mão enquanto se requebra, digamos, os quadris. Decididamente, eram outros tempos; mas, são considerações dispensáveis para a nossa história.
04. Em determinado momento, depois de uma caprichada introdução do caboclo violeiro, os marmanjos soltaram a voz na linda "Canteiros" que o cearense Fagner consagrou como um clássico da MPB. É aquela canção de versos dolentes que começa assim: Quando penso em você/ fecho os olhos de saudade/ tenho tido muita coisa/ menos a felicidade…
05. Lembra? Pois é, acho que o pessoal andava com os amores em baixa e o coração em pedaços. Tanto que o coral dos barbados, em determinado momento de euforia, seria capaz de fazer inveja ao cantor Agnaldo Rayol, menos pela técnica vocal (etilicamente lamentável, como só acontecer nessas ocasiões) e mais pelo entusiasmo da rapaziada que andava nos píncaros da lua…
06. De repente, um dos nossos lembrou de Helen, a garota que morava na casa ao lado onde fazíamos tamanha algazarra. Ela convalescia de um trágico acidente de automóvel, ficara tetraplégica e, com aquele vozerio, estávamos pertubando sua paz. Fez-se um silêncio constrangedor, só o violeiro continuou a dedilhar o instrumento, como se fizesse a trilha sonora da nossa consternação…
07. Em segundos, ouvimos a campainha da casa soar e o pai de Helen aparecer no vão da porta. Alguém se preparou para um sincero pedido de desculpas, mas foi interrompido pelo senhor de semblante marcado pelo sofrimento recente e inesperado. Com voz serena, pediu que continuássemos, pois, do quarto, Helen ouvira a canção e se emocionara a lembrar um tempo em que era possível acreditar e sonhar.
08. Voltamos a cantar, mas, àquela altura, nosso entusiasmo egoísta cedera espaço para a emoção de estar ajudando alguém a ser feliz, mesmo que por alguns instantes…
09. Sempre que vejo/ouço a fala do presidente, fico com a impressão de que ele o faz por motivos unicamente de realização pessoal. Imagina um País que, na verdade, só existe para suas perolações, em especial as de âmbito internacional. Não entende que a Nação enferma gosta de cantoria, sim; mas, quer voltar a acreditar e sonhar…