“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.
Primeiro trouxeram o ímã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. "As coisas têm vida própria", apregoava o cigano com áspero sotaque, "tudo é questão de despertar a sua alma." José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra. ”
(…)
Trecho de Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, que completa neste ano 50 anos do lançamento. Não exagero ao dizer que foi o livro de cabeceira dos que hoje andam por volta dos 50 e muitos e 60 e tantos. Me incluo entre os tais. A latinidade enchia alma, corações e sonhos dos jovens de então. A sombra dos regimes totalitários cobria toda a região e, dos confins da Colômbia, nos chegava o realismo fantástico de Marquez. Seu Quixote à moda sul-americana nos trazia um laivo de esperança, apesar da solidão, dos trôpegos passos, de tantas guerras perdidas e outras tanta que ainda estavam por vir.
À minha maneira, para situações diversas que enfrentei vida afora, não me constrangi em usar, como bordão, a fala do primogênito dos Buendia, José Arcadia:
“A terra é redonda como uma laranja. ”
Não diz muito, mas me livrou de cada enrosco…