Fotos: france-voyage.com
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25 – Olhar estrangeiro
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França,
30 de dezembro.
Madrugada em ALENÇON,
minúscula cidade na
região da Normandia.
Acordo com o calor do quarto aquecido. Não imagino como está a temperatura lá fora. Mas certamente faz frio de arrebentar esquimó; sem neve, mas muito frio.
Mesmo assim, aqui dentro, a blusa de lã me incomoda – e abro mão dela para voltar para a cama antiga deste antigo quarto de um hotel antigo.
Paramos para um pernoite em Alençon, outra ville de pouco mais de 20 mil habitantes a 200 quilômetros de Paris, onde chegaremos muito provavelmente amanhã para as festas do fim-de-ano.
Por aqui, aproveitamos o sol ameno do fim da tarde para andar pelo centro histórico, visitar a Fortaleza de Ozoé, a catedral de Notre-Dame de Alençon (onde Santa Tereza de Lisieux foi batizada) e jantar num típico bistrô.
Partimos pela manhã.
Em Paris, obviamente que, como bons turistas, engrossaremos no vaivém entre a Avenue Champs Élysées e a Tour Eiffel na virada do ano.
Dá bem pra imaginar a Babel em que se transforma aquele pedaço de mundo neste período do ano.
Não sei se gosto dessa anunciada muvuca multinacional.
Enfim…
Deixemos para amanhã o que é do amanhã…
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A bem da verdade, não foi só o calor do quarto que me fez despertar em meio à madrugada.
Quase duas da manhã e me surpreendo sem sono quando deveria estar dormindo para a dura – e deliciosa – jornada que nos espera nos próximos dias.
Estou a ruminar essa e outras inquietações.
A mais óbvia é o controle do dinheiro. O euro nas alturas tira o fôlego e arrebenta a banca deste malajambrado escriba metido a andarilho.
Outro motivo – dívida maior para comigo mesmo – é minha ausência deste bloco de anotações por dois longos dias seguidos, 28 e 29.
Não sei se no futuro essas impressões terão forma de texto, mas quando comecei a imaginar essa ‘aventura’ me comprometi a fazer um relato dos meus passos. Assim que chegamos em Zurique (dia 26) tratei de anotar tintim por tintim nossa chegada – e foi só. E olhe que já passamos por algumas cidades — Caen, Rouen, Bayeux, Avranches, Deauville, chegamos a Mont Saint Michel (vide o texto de ontem) e já estamos retornando a Paris.
Agora, em meio ao sono que deveria ser profundo, a consciência pesou e despertou-me para o relato das destemidas peripécias do Cavaleiro Andante em plagas normandas e adjacências.
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Permitam-me voltar a fita e retomar a partir da nossa chegada em Paris na sexta, 27.
Saímos do aeroporto Charles de Gaulle a bordo de um Kangoo e outro Renaut 125, da Rent-Car, e nos perdemos pelas avenidas ‘peripheriques’ da Cidade Luz. Um gira-gira que nos roubou quase duas horas até encontrarmos a sortie para a auto-estrada que nos levou a Caen, ainda distante 100 quilômetros de Mont Saint Michel, nosso primeiro destino.
Num desses perdidos, avistamos o símbolo máximo, a Tour Eiffel.
Acenamos e prometemos voltar para o reveillon.
A caminho da fortaleza de Saint Michel, o anoitecer nos surpreendeu na estrada. Não estava previsto. Mas, decidimos dormir em Caen, a cidade portuária onde as primeiras tropas aliadas desembarcaram para livrar a Europa e o mundo do flagelo da Segunda Grande Guerra.
Todos gostaram da solução.
A tarefa seguinte foi procurar um hotel.
Ziguezagueamos pelas ruas estreitas até encontrar abrigo ao alcance das nossas algibeiras no Hotel Dephon, de aparência acolhedora e com algum charme, eu diria.
Mesmo com o frio, ainda houve tempo para caminhar pelas ruas centrais até encontrar um lugar para jantar. A noite gelada não assusta ninguém por aqui. Menos ainda a breve chuva que nos surpreende em pleno passeio público. Famílias inteiras, devidamente equipadas com coloridos casacos impermeáveis, perambulam de um lado a outro pelas ruas próximas ao canal que dá para o mar.
Era como se nada houvesse – e lá no céu brilhasse um luar resplandecente.
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Ah! Cá estou a dizer o óbvio.
A chuva e a temperatura pelos arredores de zero grau são situações normalíssima – e com as quais os habitantes aprenderam a conviver tranquilamente. Os jovens se reúnem nos pubs e nos restaurantes (na verdade, estreitas cantinas), indiferentes aos rigores do inverno e aos nossos tíbios olhares de estrangeiros. Fiquei com a sincera impressão que, ao contrário dos nós, não precisam de muito para ser feliz – e, assim à primeira vista, me parece que são.
Não há traços de ostentação em nenhum deles.
Mas, é visível, a miséria-miséria, como conhecemos no Brasil, passa longe daqui.
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Sábado, 28.
Um passeio breve breve por uma feira livre, um gorro de 2 euros na cabeça e, outra vez, lá fomos nós. Rumo a Saint Michel. No rádio do carro, ouvi uma canção em francês. A introdução lembra muito aquela Coração Vagabundo, da primeira leva das composições de Caetano Veloso.
É a própria, numa versão igualmente intimista de uma intérprete, imagino, francesa
Fico em silêncio – e só então percebo que a tal encanta-me de tal forma como se fosse a trilha de um novo tempo.
Confesso: rolou uma nostalgia do meu caminhar até aquele lugar, onde nunca imaginei pôr meus calejados pés e, de repente, me encontro diante de mim e do meu espanto.
Como a tal canção, seria eu uma nova versão de mim mesmo?
Uma versão ainda mais distraída e confusa.
Ou tudo ainda não passa de consequência do fuso horário?
Bem de qualquer forma, saudei os dias e os sonhos que me trouxeram até aqui.
Estão de bom tamanho.
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Ainda na estrada, enquanto dirigia, conferi minha expressão no espelho do carro. Me achei parecido com meu pai e do ar debochado que fizera, quando, por descuido ou acaso, assistiu na TV a um representante do Green Peace defender a proibição da caça à baleia. Contundente em seu depoimento, o moço propôs o seguinte questionamento aos espectadores, eventuais ou não.
– Se continuarmos com essa pesca e caça predatórias, logo logo esses pobres animais serão extintos, desaparecerão. É este o mundo que vocês querem deixar aos seus filhos e netos? Como as novas gerações sobreviverão sem conhecer ou ter visto uma baleia? Me digam, como?
Do seu sempre aberto baú de espantos, o Velho Aldo devolveu no ato a provocação como se a dialogar com o tal ambientalista:
– Devagar com o andor, amigo. Vamos cuidar dos bichos, ok. Mas, peralá, tenho 80 anos e nunca vi um bicho desses… Ué, o que fiz então até agora? E olhe que não posso me queixar do que vivi. Não tenho muito, não. Mas, tudo o que tenho me é caro…
É isso ou quase isso.
Até porque mistério sempre há de pintar por aí…
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* Publicado originalmente em 16 de julho de 2007
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