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Crônicas de Viagens – Abadia de São Victor

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Fotos: Arquivo Pessoal

30 – Uma brevíssima visão do Mistério

O silêncio da Abadia de São Victor, um dos pontos de peregrinação (e turismo) de Marselha, é quebrado, de minuto em minuto, pelos gemidos e reclamos de um senhor que se ajoelha em um dos bancos em frente ao altar-mor.

Ao mesmo tempo em que grunhe reclamos e palavras inteligíveis, em um idioma desconhecido (e, suponho, imaginário), ele estapeia o ar freneticamente como se estivesse afastando alguém que o molesta duramente.

É visível a aflição do homem de porte longilíneo, rosto sofrido, com a barba a lhe roçar o peito.

Na penumbra do santuário, não dá para ter certeza quem era – e a que veio.

Um turista, como a maior parte das pessoas que ali está?

Um peregrino?

Um mendigo?

Um desvalido, desses que andam por aí sem ter aonde chegar?

Fosse o que fosse, a cena perturba a calma do lugar.

Os visitantes, turistas ou não, olham para ele com um naco de temor e outro tanto de cômoda indiferença.

A Abadia de São Victor, situada em uma colina com vista para o sereno mar Mediterrâneo, tem como ponto alto das visitações a cripta onde, presume-se, repousam os espólios dos santos mártires – Victor, Lázaro e Maria Madalena.

Não há comprovação científica da autenticidade de tais relíquias.

É a peregrinação dos fiéis, ao longo dos séculos, que dá sustentação à memória e ao culto dos santos.

A Igreja, como instituição, não confirma, nem autentica.

Mas, não teve (e não tem) como impedir mais esta manifestação de fé.

Não sei se quem está ali, naquele momento, conhece a história dos santos e suas relíquias.

Sei que a tal solidariedade e ajuda fraterna passam distantes. Ao largo de qualquer valor cristão e/ou humanitário que a Igreja e os santos promovem e recomendam.

Não me eximo de culpa.

Quando vou a uma igreja, seja no Brasil ou em viagens, busco instantes de paz e conforto, espaços que são cada vez mais raros em nossa fatigada vida cotidiana.

A aflição do homem também me incomoda.

Confesso, porém, que em nenhum momento pensei em me inteirar melhor do que está acontecendo.

Não passou pela minha cabeça e, pelo que pude perceber, de ninguém ali presente.

Ninguém vírgula.

Um casal de motociclistas – digo motociclistas, pois ambos trazem um capacete enfiado em um dos braços, como se fosse uma desproporcional pulseira – interrompe o périplo pelo santuário ao perceber a cena.

O homem dirige-se, então, a passos firmes ao lugar onde está o aflito.

A mulher permanece à certa distância, com pequeno rosário entre os dedos de uma das mãos.

Ao se aproximar, o motociclista estende o braço direito e, como a lhe dar uma bênção, toca levemente o alto da cabeça do outro que, segundos depois, se aquieta, como por encanto.

Ficam assim por dois ou três minutos.

Um abençoando o outro.

Como se unissem em um único leve sussurrar suas mais sinceras orações.

Há ali um pacto, creio.

Uma manifestação de fé e de amor ao próximo.

Uma brevíssima visão do Mistério.

Sem qualquer outra palavra, o benfeitor se afasta.

Tem o semblante sereno de quem cumpre uma missão.

E assim, como se nada houvesse acontecido, continua a visitação ao tabernáculo ao lado da companheira.

Faz-se o silêncio.

Só é possível ouvir os passos dos visitantes e, vez ou outra, o espocar do click de alguma máquina fotográfica.

Estava prestes a deixar a Abadia quando vejo o homem – antes transtornado – levantar-se calmamente. Vestir o casaco de bom talho, aprumar a mochila nas costas, persignar-se diante do altar e sair pleno de paz.

Podia ser qualquer um de nós, pensei.

E eu, que nem rezar direito sei, murmuro a troco de nada o trecho do Sermão da Montanha (Matheus, V, 1-12)  que aprendi, no tempo de garoto, no colégio marista:

Bem aventurados os que choram, porque eles serão consolados.
Bem aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados Filhos de Deus.
Bem aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.

* Publicado em 25/01/2013

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