Assim que o amigo soube de minha estada na Alemanha não se conteve. Veio me perguntar, cheio das intimidades, o que achei “da capital de todos os tedescos”.
Escova é figurinha fácil aqui, neste espaço.
Todos sabem de sua fama, em tempos idos, de Dom Juan das Quebradas do Sacomã, São João Clímaco e adjacências. Fama que aliás ele cultiva ainda hoje com carinho e devoção. Daí a inevitabilidade de buscar no baú da memória os dias em que o próprio andou pela cidade quando se enroscou com uma gringa que tocava violoncelo numa das tantas e quantas orquestras que lá existem.
II.
Não me perguntem como se deu a proeza.
Não saberei explicar nos detalhes.
Sei que a lábia do Escova tinha lá seu poder.
A “alemoa” (assim ele a chamava) era um tipaço. Veio fazer uma temporada em Terra Brasilis e, em um passeio bucólico ao parque do Ibirapuera, conheceu o dito-cujo, e deu-se o acontecido.
Assim que soube do talento musical da nova ‘mulher da sua vida’, Escova não teve dúvidas: a levou para um bate-coxa lascado no Centro de Tradições Nordestinas.
A moça ficou tão feliz que não teve dúvida em retribuir a delicadeza.
Convidou Escova para uma temporada em Berlim.
III.
Gabola que só, Escova diz que o xaxado em Berlim era manhã, tarde e noite. “No hotel, e na horizontal”. Nos intervalos, a musicista dava conta dos ensaios e das apresentações da orquestra em que trabalhava.
E você?
— Eu ia a reboque. Tinha até lugar reservado para mim em uma frisa no primeiro
pavimento.
Escova, você gosta de música clássica?
— Assim, assim…
Como assim?
— Tem umas mais conhecidinhas que dá para a gente ouvir. Mas, a maioria…
E aí? O que você fazia?
— Usava a imaginação.
IV.
Imaginação? Como assim? – perguntei ao Escova.
— Simples, meu caro, enquanto a música tocava, eu ficava criando historinhas.
Não entendi, Escova.
— Por exemplo. Tinha uma senhora que tocava oboé era a cara da comadre Ofélia, mulher do Torres, um pé-de-cana lá, da Vila Carioca, que adora o Zeca Pagodinho.
E?
— E aí eu ficava imaginando o compadre confundir a patroa com a senhora, invadir o palco e pedir à mulher que tocasse “Deixa Vida Me Levar”, entre outros sucessos do repertório do Rei de Xerém.
Sou obrigado a concordar com o Escova. Seria uma cena e tanto.
V.
– Quando me cansava dessa brincadeira, olhava para a plateia de senhores sóbrios e senhoras rijas, todos em trajes sociais.
Escova, que delírio. Qual a graça disso?
— Vou lhe dizer. Trabalhei muitos anos em uma fábrica de manequins de gesso.
Eu dava o acabamento, lixava um por um e os colocava em fila, e eles ficavam igualzinho ao pessoal do teatro. Aí eu levava um lero com eles, só no pensamento. Gastava o meu latim com as coisas do mundo…
E é legal conversar, mesmo em pensamento, com os manequins?
– Opa. Uma delícia. Quem cala consente, então eles ali quietinhos quietinhos, você
fica se achando o senhor do mundo.
VI.
— Também gostava muito de ficar olhando o maestro, o cara era todo poderoso, mandava prender e mandava soltar, era parecidíssimo com o Ankito. Lembra aquele comediante das chanchadas da Atlântica que imitava o Oscarito, então…
Ele parecia o Ankito ou o Oscarito?
– O amigo gosta de complicar. Ele parecia o Ankito, e era todo cheio de trejeitos para reger a orquestra, o que o deixava ainda mais parecido com o comediante. Teve momentos que precisei segurar o riso para não atrapalhar a audição.
VII.
Tentei mudar o rumo da conversa.
Perguntei quanto tempo ele ficou nesse bem bom em Berlim.
Escova respondeu que uns 10 dias.
– E por que voltou, eu quis saber. O amor acabou?
– Nada disso. O marido da moça voltou de viagem – o cara é músico também, só que em outra banda. E pacifista que sou preferi evitar uma Terceira Guerra Mundial. Sabe como são os alemães nessa questão de invadir território alheio…