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E agora, José?

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Foto: Arquivo Pessoal

“Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: E agora? Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas. E agora, José? Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tônico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.”

“Saber donde vimos e quem nos gerou, apenas nos dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma espécie de alforria para a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas embaraçosas e olhares mais curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de alguém bastante conhecido para que não fique em branco as linhas do cartão de identidade, é como vir ao mundo carimbado e com salvo-conduto.”

“Respiro profundamente para mergulhar no passado fugidio da infância, onde as verdades se diluem e resplendem como moedas de ouro deixadas ao limo.”

“O mito do paraíso perdido é o da infância – não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje. Eu não o sei.”.

“Ainda hoje tantos anos passados, ainda me pergunto que vulto de mim terá ficado disperso na brancura das areias ou imobilizado em pedra na arriba cortada pelo vento. E sei que não há respostas.”

“E a vida vai andando, cambaia, como se levasse um prego no tacão, e uma incrível preguiça de o arrancar. De modo que o mundo será de facto transformado mas não por nós.”

“Mas talvez seja melhor assim: não ter alcançado o pináculo então, é uma boa razão para continuar subindo. Como um dever que nasce de dentro porque o sol já vai alto.”

“Cheguei ao fim da crônica, fiz o meu dever. E agora, José.”

* TRECHOS de crônicas recolhidos do livro A Bagagem do Viajante, de José Saramago, publicado pela Companhia das Letras/1992, porque, como diz o autor em outra crônica, dias há que nos deixam “frágeis, quebradiços, mais aflito que uma tartaruga voltada de barriga ao ar”.

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