Éramos garotos de tudo; dez, onze anos.
Meninos livres, voávamos soltos pelas ruas e os campinhos improvisados, de terra batida, no bairro do Cambuci.
Filhos de operários, tínhamos a vida remediada de quem mora de aluguel e conta os trocados para tocar os dias e tentar ser feliz.
E éramos felizes à nossa maneira naquela pacata São Paulo do início dos anos 60.
Nossa maior diversão – onde ríamos pra valer, ríamos “de doer a barriga” ou “de cair da cadeira”, como se dizia então – eram as matinês do Cine Riviera nas tardes de domingo. E a maior diversão das matinês do Cine Riviera nas tarde de domingo era ver os filmes de Ankito, particularmente lembro de “Vai Que É Mole” (1960) com Grande Otelo e Jô Soares em início de carreira, impagável como o ladrão Bolinha, e “Os Três Cangaceiros” (1961) que fez ao lado de Grande Otelo e o genial Ronald Golias.
Acordei com uma baita saudade daqueles dias ingênuos, das chancadas ingênuas do agora saudoso Ankito e da ingenuidade que não existe mais em mim…
* Ankito (ou Anchizes Pinto) morreu na segunda, dia 30, no Rio de Janeiro. Era paulistano do Brás e tinha 84 anos.
II.
Em meados dos anos 70, quando comecei no jornalismo – repare nos meus cabelos grisalhos na foto aí em cima, rapaziada – havia nas redações uma divisão bem específica dentro das editorias de Cultura — grafava-se assim em alta. Quem escrevia sobre cinema escrevia sobre cinema – e ponto. Nada de dar pitacos em outra arte. O mesmo rigor valia para teatro, TV, artes plásticas… Para música, não; era diferente. Existia o cara que escrevia sobre música internacional (o mais famoso era o Ezequiel Neves, do Jornal da Tarde) e o que mandava ver na MPB – e aqui eram tantos e tamanhos que ficarei em apenas dois nomes para não cansar o leitor com assuntos paralelos: Maurício Kubrusly, também do JT e hoje está no Fantástico, e o Dirceu Soares, da Folha de S. Paulo.
Como os preclaros leitores já devem imaginar, eu era fanático MPB Futebol Clube.
Admito também, e com algum constrangimento, que funcionávamos como torcidas de futebol.
Não que chegássemos às vias de fato, como as tais organizadas de hoje, longe disso. Mas, as discussões eram acaloradas sobre qual lançamento era mais importante e, conseqüentemente, merecia maior espaço gráfico ou o lugar nobre, no alto da página.
Lembro-me agora de uma queda de braço com o amigo (mesmo escrevendo sobre música alienígena) e jornalista Clóvis Naconecy de Souza.
Ele mandou que prestasse atenção ao lançamento de um novo disco do Quenn e se dizia maravilhado.
Torci o nariz. Mas, no dia seguinte, na redação, com a lição de casa cumprida. Não lhe disse não ouvi e não gostei que não sou desses que tem opinião fechada sobre tudo e sobre todos.
Após uma audição superficial em casa, cheguei chegado, com meu veredito pronto, o que gerou uma inútil discussão sem fim e sem propósito.
— Nada além do que uma opereta de fundo de quintal. Por falar nisso, você já ouviu o novo disco do Caetano?
Bem, não vou repetir aqui os comentários do amigo sobre Caetano porque, como já disse acima, não quero cansar o leitor com assuntos paralelos etc etc. Também porque não me lembro da íntegra de suas palavras; mas não eram lá muito amáveis, tenham toda a certeza.
Raramente, resistíamos a chance de provocar um ao outro na área musical. Digamos, que era o mais divertido da convivência de todos ali. Mas, esses tais consensos aconteciam e eram inevitáveis quando o Clóvis vinha com um disco de Marvin Gaye – e aí, sim, eu capitulava.
Era, então, a minha vez de ficar… m a r a v i l h a d o.
* Marvin Gaye, o príncipe do soul, completaria 70 anos nesta quarta, 2 de abril. Morreu em 1984, um dia antes de completar 45 anos, com um tiro no peito, assassinado pelo próprio pai.