Foto: Divulgação
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“Sou apenas um anarquista triste e inofensivo que, quando muito, só faz mal a si mesmo.”
Gosto das citações de Carlos Heitor Cony (1926/2018).
Esta, em especial, me é cara e próxima.
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Cony é dos meus jornalistas/autores prediletos ao lado de Rubem Braga e Mario Quintana.
Seus pensares, pinçados em crônicas e romances, como diz a garotada, me representam.
Quase sempre batem fundo naquela zona sensível entre o fígado e a alma.
Me identifico com o tom existencial e libertário que as falas proclamam.
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Tenho lá minha simpatia pelo anarquismo, apesar de não o professar por falta de disciplina e coragem.
Tento ser o mais sincero que posso comigo mesmo e com as pessoas ao meu derredor.
Que não esperem em mim um poço de virtudes (pois não as tenho).
Talvez eu me assemelhe mais a um areal de incertezas.
“As oportunidades e as situações é que fazem e desfazem dos homens” – (Saramago).
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Quando jovem – se é que um dia o fui? – olhava o mundo e via o que bem queria ver.
O resto, não me interessava.
Era jovem e, não raras vezes, sonhador e inconsequente.
Mais vivido, lavado e enxaguado nas águas do mundo, ainda tento olhar esperançoso para o tal Planeta Azul e o tal rincão verde e amarelo.
Mas, reconheço, escapa-me hoje o dom de iludir.
As coisas são como são e raros escapam aos desígnios e às trapaças da sorte.
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Faço este enigmático preâmbulo para lhes dizer há fatos que nos são intangíveis.
Não sei como nos chegam.
Menos ainda para onde nos levam e vão.
Mas, estão aí e dão o que pensar.
Melhor assim, creio.
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Permitam-me uma digressão…
Noite dessas, estava eu, posto em sossego, a revirar minha coleção de DVDs do Woody Allen.
Independente do que dizem ou deixam de dizer do hoje senhor de 84 anos, assino e dou fé à abordagem humanista e, quase sempre, contundente que dá ao temário de seus filmes. Sejam dramas (como Match Point) ou comédias-românticas (como Um Dia de Chuva em Nova York).
Ao menos nos roteiros que assina, Woody Allen parece saber das coisas.
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Voltemos à cena.
Era começo de noite, no lusco-fusco do isolamento social, decido rever um clássico.
Escolho um que foi filmado em 1976 e, no Brasil, ganhou o apropriado título de Testa de Ferro por Acaso.
Alguém se lembra da história?
Tentarei resenhá-la aqui.
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No ano santo de 1953, 0 McCartysmo – a perseguição aos artistas simpáticos ao comunismo – dita o tom, o ritmo e o dia adia das produções da TV e do cinema americano. Há um Comitê de Investigação (alguns hoje chamariam de Gabinete do Ódio) que convoca para duros interrogatórios as personagens que supõe sejam suspeitas de algum envolvimento. Fossem qual fossem.
Não importa.
Querem que os tais, postos sob pressão e ameaça, denunciem outras figuras adeptas dos ‘vermelhinhos’.
Quem não colabora com o tal Comitê é afastado sumariamente das produções em voga, cai em desgraça e passa a integrar a implacável lista negra.
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É, neste contexto, que entra em cena nosso personagem, Howard Prince (Woody Allen).
Ele é um pacato caixa de restaurante, inveterado apostador e algo, digamos, deslumbrado.
Prince topa prestar ajuda ao amigo de infância, Hecky Brown (Zero Mostel), que era um bem-sucedido roteirista de programas de TV até cair na lista negra e, assim, ficar ao desamparo.
Não consegue emplacar nenhum roteiro tanto na TV como no cinema.
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Prince/Woody passa, então, a assinar os textos de Hecky.
Ele aceita a incumbência – e até curte, ganha comissão para tanto. – sem ter a exata noção do que representa.
Aos poucos, no entanto, vai se inteirando do trágico momento que vive.
É bem verdade que uma linda mulher, Florence Barrett (Andrea Marcovicci) o ajuda nessa viagem à consciência e à postura cidadã.
Eis a essência e os arabescos deste belo libreto à liberdade de expressão e à democracia.
No mais, só assistindo…
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Mas, porém, contudo, todavia…
Como lhes disse acima, estava eu, posto em sossego, a assistir este bom filme quando, de repente, não mais que de repente, importuna-me as estridências vindas de um caminhão de som a tocar a zilhão nosso hino nacional.
Dou pausa no DVD, vou à janela e vejo a raquítica carreata que tenta se aproveitar da hora do rush para encorpar e causar.
Vez ou outra, as triunfantes estrofes da melodia são interrompidas para dar vez à voz embaçada de um senhor falador.
O homem diz barbaridades.
Não diz nomes, mas acusa nossos governantes:
“Querem dizimar nossa economia!”
“Haverá fome e desemprego!”
“Eles nos submetem aos esquerdistas!”
E por aí foi.
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Confesso:
Perdi muito do que discursava, em tom alarmista, o verborrágico senhor (moro no 19° andar).
Mesmo assim pude ouvir como ele concluiu epicamente um dos apartes:
“Estamos aqui para por fim à ameaça do comunismo!”
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Não acredito…
Lá se vão 70 anos!
(Minha vez de usar o ponto de exclamação.)
Seria mera e preocupante coincidência?
Ou uma alucinação minha?
Seria um dos tantos truques do cineasta para dar veracidade ao que vejo na telinha?
Lembram Rosa Púrpura do Cairo quando o ator sai da tela para xavecar a mocinha que está na plateia?
Então…
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Melhor conferir.
Verifico o calendário atrás da porta da cozinha para ter certeza do ano em que estamos.
Mesmo assim, algo me inquieta.
Assalta-me a dúvida:
Será que ainda hoje há quem acredite nessa balela?
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Melhor voltar a ver o filme, mas, confesso, acompanha-me um travo amargo.
Demoro outro tanto para me livrar da amargura.
Mas aí, meus caros e raros, o filme já vai pelos finalmentes.
Um alívio.
A ruidosa passeata foi tonitruar por outras redondezas.
Permito-me, pois, aumentar o volume da engenhoca para melhor ouvir a voz de Frank Sinatra enquanto sobem os letreiros.
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O que você acha?