Permitam-me, afáveis leitores…
Vou continuar nas águas nostálgicas do post-crônica de ontem. É que lá pelas tantas desta siberiana madrugada, ainda às voltas com cobertores e edredons, veio-me a seguinte frase:
Não tínhamos nada. Éramos tão simples.
Queríamos tão pouco.
Uma reflexão. Uma óbvia – e sincera – síntese de tudo que ontem aqui escrevi. Pensei prontamente em sair da cama para postar a frase naquele texto. Só a intenção congelou minha alma. Nem foram precisos os tais vinte segundos para que uma oportuna idéia se configurasse em minhas mente.
— E se eu começasse assim o texto de amanhã?
(Usa-se travessão ao se transcrever um pensamento? Olha que dúvida. Não havia pensado nisso. Em todo caso, vou deixar assim para dar mais clareza ao texto. Mas, tenho lá minhas dúvidas.)
Nunca foi tão simples me convencer de algo. E, notem, eu estava um tanto insone não só pelo frio de fazer inveja a qualquer bom pingüim. Também a lembrança inefável do strogonoff que derrubei no jantar me fazia um tanto insone e, diria, precisando de alguma movimentação.
Mesmo assim, resisti. E me fiz fiel a causa do “amanhã será outro dia” – e cá estamos.
É verdade que , àquela época, vivíamos um outro mundo. Não havia email, celular, vídeo game, carro do ano, roupa de grife, intercâmbio internacional, realidade virtual, tênis importado e toda essa parafernália que hoje nos é imprescindível. Imaginem vocês que televisão era uma raridade. Quem adquiria um aparelho – em branco e preto, com a tela repleta de chuviscos – abria as portas e janelas da casa para quem não tinha. Éramos os lendários televizinhos.
Uma festa que, mais dia, menos dia, virava uma grande inconveniência. Tinha vizinho abusado a escolher um dos três canais que existiam ( TV Tupi, canal 3; TV Paulista, canal 5 e TV Record, canal 7), indo e voltando no dinossáurico seletor de canais (que sempre quebrava) ou falando demais quando o TV de Vanguarda exigia silêncio.. Piores mesmo eram os que não iam embora nunca…
"Já é hora de dormir.
Não espere mamãe mandar.
Um bom sono pra você.
E um alegre despertar".
O jingle do comercial de cobertores era perfeito. Nós, nem tanto. Mas, nos entendíamos. E a base de tudo era uma tal palavra mágica, hoje em desuso: amizade.
— Hei, Dona Lúcia, têm uma xícara de açúcar para me emprestar que o meu acabou?
— Olhe, Carmela, fiz um bolo de fubá. Leva uns pedaços para as crianças.
— Pasqüalim, a véspera de Natal é na minha casa. Não esquece, hein?
— Ma Che, Carlito. Então, você vem com a família almoçar aqui, no Dia de Natal.
Éramos tão simples.
Havia a matiné aos domingos no cine Riviera, o futebol diário no campo de terra batida, a roupa de ir a missa, o grupo escolar, a turma da esquina… O ano dividido em épocas distintas. Havia tempo de empinar ‘pipas’, de catar balão, de rodar peão, de colecionar carteira de cigarro, de jogar bolinha de gude, de ‘roubar’ goiaba verde no quintal da chácara da Dona Maria — algo proíbido e só menos cobiçado que o olhar oblíqüo de Lígia, a mais bonita e inatingível namorada.
Éramos tão simples, repito.
Sonhávamos com tão pouco. Tínhamos tudo.