Escrevi aqui num post-crônica que, por um brevíssimo tempo na minha vida, fui auxiliar ou ajudante de agrimensor. Ontem, alguém me perguntou:
— Mas, professor, que diabo é isso?
Foi o suficiente. Para que eu entrasse na máquina encantada do tempo-que-se-foi. Portanto, meus caríssimos cinco ou seis leitores, como diria aquele simpático contador de causos, sentem porque lá vem história…
(Ou vocês acham que eu me contentaria com uma explicação técnica?)
I.
Não sei já lhes informei da má fama que arregimentei quando era alegre e jovem?
De família remediada para pobre, era hábito naquela época todos começarem a trabalhar muito cedo. Verdadeiramente para essa, digamos, classe social, os estudos de um filho vinham depois de um emprego que ajudasse no orçamento familiar.
Meu pai não pensava assim.
Queria que eu estudasse. Não especificava o como, nem o porquê. Mas, deixava claro:
— Meu filho vai ser doutor.
Para a vizinhança da Muniz de Souza, os parentes dos dois lados e intrometidos de plantão, essa postura era muito criticada. Mas, as trombetas de tias, cunhados e conhecidos não soavam no ouvido do Velho Aldo, calabrês e respondão. Em compensação, o coral dos descontentes cantava estridente nos tímpanos da Dona Yolanda, minha mãe. Que por mais pacienciosa que era, não suportou as insinuações que eu não era lá muito chegado ao trabalho. Onde já se viu? Um molecão daquele tamanho e não ajudava em casa nem com um vintém.
— Olha que belo vagabundo está me saindo aquele – diziam deste que escreve essas linhas nostálgicas, nesta sexta de chuva preguiçosa.
II.
Olhem quanta maldade!
Havia até quem insinuasse que eu era muito parecido com o Beto Rockfeller, protagonista de uma famosa novela da TV Tupi. O protagonista era Luiz Gustavo, que fazia o papel de um simpático 171, mas do bem. Pobretão que era, usava de mil expedientes para se fazer passar por milionário e freqüentar as melhores rodas paulistanas.
Lembro de uma cena engraçadíssima.
Um ricaço estrearia um novo iate com uma ‘festa de arromba’, para usar o termo da época. Toda a alta sociedade se faria presente no Guarujá e, óbvio, que nosso herói se incluiu entre os tais. Fez o possível para ser convidado – e foi. Mas, aí, surgiu outra questão: como chegar no iate ancorado a uma razoável distância da praia. Beto e seu fiel escudeiro (interpretado por Plínio Marcos) precisariam alugar um barco ou mais precisamente ter um que o levasse até a festa. Claro que eles não poderiam chegar de smoking e de barco a remo.
Beto encontrou a solução na própria praia. Um garoto de nove, dez anos tirava onda num pranchinha, que à época era conhecida como ‘jacaré’ quando o anti-herói teve a arrojada idéia. Tomou a prancha emprestada do garoto – que se pôs a chorar – e não teve dúvidas: nadou até o iate.
Chegou estropiado, mas chegou e de maiô com uma estampa psicodélica. Os convivas o saudaram como um ‘milionário extravagante’. Ele agradeceu e se aproximou do anfitrião, incrédulo e feliz com a presença do amigo. Beto aproveitou e pediu ‘umas roupinhas emprestadas’, pois não poderia ficar na festa com aqueles trajes.
Minutos depois ele reaparece em cena, elegantemente vestido, a ‘paquerar’ todas as mulheres – todas não, minto, só as muitas ricas e bonitas.
III.
Vejam que comparação!
Eu até que gostava de parecer (não parecendo) com um cara que fazia sucesso na TV. Mas, a Dona Yolanda odiava. Tanto que resolveu agir. Mesmo contra a vontade do Aldão – coisa que ela não fez em 56 anos de casamento. Buscou nos seus guardados um número de telefone de um velho tio, irmão do meu avô Carlito, e rumou decidida para um telefone público…
Mas, essa é uma outra história.
Ou a verdadeira história do ajudante de agrimensor…
IV.
Se há estudantes de jornalismo que ainda hoje se espantam com o termo ‘agrimensor’, imaginem a minha expressão quando a Dona Yolanda voltou da rua com uma verdade inabalável.
— Acabou a moleza. Você começa amanhã como ajudante de agrimensor. Vai trabalhar com o Alberto, meu primo, filho do tio Júlio.
Para mim, tudo era uma grande novidade. Não conhecia o Alberto, menos ainda o tio Júlio e, principalmente, o que viria a ser ajudante de agrimensor. A mãe estava decidida
— Depois você conversa com seu pai.
Lembro: estava preparando meu time de futebol de botão para um importante compromisso naquela tarde. Enfrentaríamos o time do Astrogildo no campo de eucatex da casa dele – ou seja, no estádio do adversário. Nem isso Dona Yolanda levou em consideração. Para ela, seria um cala-boca em todos que falavam de mim.
Em vão, tentei argumentar com a verdade dos fatos.
— Mãe, amanhã é sábado.
Como resposta, ouvi um indiferente “e daí!”.
Percebi, então, que não haveria escapatória.
V.
E não teve mesmo.
Manhã de sábado cinzento. Lá estou no começo da avenida Ipiranga. 7 da matina. Ainda desacoroçoado com a realidade que me espera – e que, me parece, à primeira vista bem pior do que o pai me explicara.
— Agrimensor, topógrafo são a mesma coisa. Vocês vão fazer a medição e mapear as ruas para eventuais futuras obras ou mesmo um reparo. Também não é o fim do mundo. Será uma boa experiência.
Não era o fim do mundo ver todo mundo com cara de fim de semana e eu ali sem estar a fim de trabalhar. Mas, confesso, não me senti confortável ao ser apresentado a duas varinhas brancas com as extremidades vermelhas, à trena e ao prumo. Era o meu kit ‘operário-padrão’, muito prazer.
Não riam, por favor, que eu paro a história por aqui…
Minha função era razoavelmente simples. O topógrafo, primo Alberto, se posicionava no marco zero da rua, com um aparelho medidor sobre um tripé (parecia uma mistura de câmera de TV com um binóculo, tinha visor, lente e tudo), e eu e mais outro ajudante esticávamos a trena até determinado ponto. Gritávamos a metragem que ele anotava num caderno de cálculos e posicionávamos a régua para que ele olhasse pelo visor da trapitonga e ‘fechasse’ com outras medidas que, na verdade, nunca me interessaram.
Feito isso, ele vinha até onde estávamos e nós seguíamos em frente para nova rodada de números e cálculos que, repito, não me interessavam nadinha.
Assim seguíamos até o fim da rua…
Até que não me saí mal neste primeiro dia – especialmente na hora do almoço, pago pela empresa. Fui apresentado a um tal de “picadinho”, consistente prato pronto, que derrubei em segundos, acompanhado de um guaraná, refrigerante à época só nos fins de semana e olhe lá…
— Primo, você come rápido, hein.
Foi a vez de Alberto se espantar.
VI.
Terminamos os trabalhos por volta das 17 horas. A equipe do agrimensor Alberto encontrou-se com outra equipe medidora da mesma empresa na rua Nestor Pestana. Eles vieram da Consolação e todos saudamos o feliz encontro e, principalmente, o fim do expediente. Estava em cacos.
À tarde o serviço arrastou-se. Efeito da leseira que o picadinho provocou? Provável. Ou o desalento por testemunhar as pessoas sem nada a fazer, indo aos cinemas ou mesma deixando-se largar em bares e restaurantes? Com certeza.
Eu ali. Pra lá e pra cá. Estica daqui, puxa dali. Olha o prumo. Acerta a régua. Será que eu perderia minha vaga de quarto-zagueiro titular do time de várzea da Vila Carioca, o invicto Brasília (invicto porque perdia todas). Àquela hora, o jogo devia estar correndo solto. Será que trabalharíamos todos os sábados? Ah, não…
— Ah, sim, primo. Segunda-feira passo às 8 na sua casa. Vamos começar uma medição lá pelos lados do aeroporto. Querem abrir uma via expressa lá. Vai se chamar avenida dos Bandeirantes…
Era o primo Alberto, topógrafo, avisando da nossa próxima jornada. Histórica e breve jornada, como vêem.
VII.
Na manhã de segunda, foi montada uma operação de guerra com a reunião de várias equipes de agrimensores numa praça perto do aeroporto. Íamos esquadrinhar toda aquela região e preparar a área para transformar aquele fundo de vale numa grande avenida que cortaria São Paulo de leste a oeste. Uma tal de avenida dos Bandeirantes.
Como disse anteriormente, não entendia nada daquelas conversas que, aliás, não me interessavam. Mas, fiquei feliz quando soube que o pessoal do Alberto iria rastrear todas as imediações da avenida Miruna — ruas transversais e paralelas.
Porque fiquei feliz? Simples. Sabia por ouvir falar que a TV Record – então líder absoluta de audiência – estava localizada na tal avenida. A chance de ver algum artista por ali me daria uma certa notoriedade junto aos meus amigos. Que, como todos, estranhavam quando eu dizia o que andava fazendo profissionalmente.
— Ajudante de agrimensor? Cada uma que escuto. Conta a verdade, cara. Você faz o quê?
Desisti de explicar. Até porque ninguém parava para ouvir. Quem sabe se falasse que havia encontrado a Elis Regina ou o Roberto Carlos, alguém se interessaria pelo assunto.
— Então, falei: Roberto, só um minuto, não saia do lugar que estou terminando umas medições importantes…
Sempre tive tendência a imaginar coisas…
VIII.
Bem, vamos ser práticos. Passei nove dias no estica e puxa daquelas ruas e vi, à distância, apenas dois artistas. O compositor Adoniran Barbosa, de gravata borboleta, chapéu e copo de uísque na mão. Era dez horas da manhã, ele estava sentado à mesa de um bar avarandado em frente à Record. E a cara de poucos amigos do autor de “Trem das Onze” não deixava a menor dúvida.
Passei direto e reto com meu kit de ‘operário padrão’. Estou certo, foi a melhor decisão. Puxei a trena na boa, ajeitei a régua, o prumo e fui ‘cantar’ os números só quando cheguei no outro setor.
Eu, hein!!!
IX.
Lá pelo sexto ou sétimo dia de trampo, conhecemos outra celebridade da Record. O humorista e produtor do Concurso de Bandas e Fanfarras, Durval de Souza. De uma extraordinária simpatia, acolheu nossa equipe em sua casa, situada numa das ruas que medíamos, quando começou uma abençoada chuva. Abençoada porque quando chovia tínhamos que paralisar o serviço e esperar a melhora do tempo.
Acertou quem desconfiou que São Pedro era o santo mais acionado por mim nesses dias. Uma garoinha que fosse – e o Alberto, mesmo contrariado, mandava todo mundo procurar abrigo. Nesse dia, por acaso, paramos em frente à residência do artista. Que se mostrou solícito e preocupado.
— Teremos desapropriações por aqui, então – afirmou em tom de pergunta.
— Vão derrubar tudo por aqui. Vai ser uma avenidona…
Era eu já vivenciando o lado sensacionalista da notícia. O Alberto não gostou.
— Esse meu primo tem um parafuso a menos…
X.
A impressão ficou mais evidente no dia seguinte.
Tínhamos que medir um cruzamento e aí era preciso ter um cuidado extra. Pois, não podíamos atrapalhar o trânsito e tomar cuidado com os instrumentos, especialmente a trena. Deixa-la sempre rente ao chão para evitar acidentes. Foi exatamente o que não fiz quando me distrai por um segundo. Levantei um tantinho a fita métrica que enroscou nos pneus de um automóvel e voou longe. Não houve feridos, mas considerável prejuízo material. A trena ficou imprestável.
— Esse primo já deu o que tinha que dar – comentou desiludido o Alberto.
XI.
Sinceridade. Eu já estava no meu limite. Dez dias acordando às seis e meia. Me entupindo de ‘picadinho’ e guaraná na hora do almoço. Dois sábados sem jogar futebol. Só no estica e puxa de trenas indomáveis e voadoras e prumos inquietos que acabavam com meu ânimo para qualquer outra atividade.
Mas, não reclamei e ia tocando…
No décimo dia, encontramos a outra equipe. Fechamos nosso setor e eles o deles.
O primo Alberto andava mais calado do que de costume.
Por isso, estranhei quando ele entabulou uma longa conversa com o Bigode, o agrimensor da outra turma.
— Eu e a sua equipe vamos por aqui. Você e o meu pessoal fazem o trajeto inverso.
Será que ouvi direito – perguntei a mim mesmo.
— E fica esperto que o ‘cabeludo’ é meio folgado.
XII.
Era isso mesmo…
De primo acabei virando cabeludo folgado, no entender do Alberto.
— Ele não parece o Beto Rockfeller?
Fiquei na minha. De leve…
XIII.
— O ‘figura’, amanhã quero você às sete em frente ao portão de embarque do aeroporto.
— Legal. Nunca andei de avião.
— Não faz graça, meu chapa, você vai trabalhar comigo. Às sete. Ok?
— Não vai dar. Meu primo só passa às oito.
— As regras mudaram. Às sete e fim de papo.
Não respondi. Nem valeria a pena responder àquele metro e meio de pretensão, apelidado de Bigode. Cabelo aparado à ‘escovinha’ em uma época que só militar usava o corte, bigode vasto e felpudo caindo sobre o lábio superior, cara quadrada – era o próprio, arremedo de feitor e sargentão, de prancheta na mão e calça de tergal verde-abacate.
A volta no Fusca do Alberto foi silenciosa. Afinal, ele era cúmplice na troca de ajudantes e se manteve afastado do diálogo que travei com o Bigode, o que se achava.
Na despedida, não houve ‘até amanhã’. Um ‘obrigado e tchau’ ficou de bom tamanho.
Nem lembro se o Alberto respondeu.
XIV.
Na manhã seguinte, acordei antes de a mãe chamar. Me vesti com a melhor roupa e me despedi da mãe, sem tomar o café da manhã.
— Aonde vai. Você não vai esperar o Alberto?
Foi a vez da mãe ficar sem resposta. Antes das sete estava dentro do ônibus. Mas só cheguei às oito e pedradrinha no Itaim Bibi. Fui direto ao escritório de engenharia. Apresentei-me ao departamento pessoal e pedi minhas contas. Dez dias de trabalho, deveria receber em torno de 250 reais (transformando em moeda de hoje). Na verdade, recebi um pouquinho a mais. Quase trezentos paus.
Fui direto para o centro de São Paulo. Fiquei zanzando por ali, com a grana espalhada em todos os bolsos. Caso algum punguista me ‘aliviasse’, ficaria apenas com um décimo do dinheiro. Era só o que podia acontecer na São Paulo dos anos 60: você dar o azar de cruzar com um mão leve, um batedor de carteira num coletivo ou num local de aglomeração. Um encontrão e zapt. Você nem percebia que o cara havia furtado sua carteira…
Enfim…
Fiquei zanzando pela avenida Ipiranga. Olhei vitrines vagarosamente. Ameacei comprar uma camisa na alfaiataria Picadilly – mas, contive o impulso, além do era parecida com a que o Beto Rockfeller usava na novela. Antes das onze já estava no boteco que fez aquele ‘picadinho’ inesquecível para, agora sim, um almoço como ‘manda o figurino’. Às 13h15 fui o primeiro a comprar ingresso para a primeira sessão do cine Windsor. Não lembro o nome do filme, mas a atriz devia ser bem bonita – um dos critérios que sempre adotei para ver bons filmes.
XV.
Cheguei em casa – e claro – a Dona Yolanda estava, digamos assim, em choque.
— O que você aprontou. Não me diga que…
Fui obrigado a dizer.
— Fui demitido por vontade própria.
— Como assim?
Era uma longa história. Ela não entenderia alguns pontos de honra. Somos o que somos – e ponto. Não poderia deixar aquele estropício me transformar numa caricatura de mim mesmo. Era ele ou eu. O projeto da avenida Bandeirantes era muito pequeno para nós dois. Uma pena, mas…
Troquei-me rápido e fui direto para a quadra de cimento do Bandeirantes, da Vila Carioca. A turma ia fazer um rachão daqueles e eu precisava recuperar minha forma. Afinal, o Zé Luiz teria que ir ao casamento do irmão no sábado — e não poderia jogar. Ele entrou no meu lugar e não comprometeu. Eu não podia perder essa chance de recuperar minha condição de quarto zagueiro titular do valoroso time do Brasília, aquele que nunca venceu.
Nota do Autor –
Alguém aí tem alguma dúvida que o trecho mais certinho da Bandeirantes é justamente a reta que corta as imediações da avenida Miruna, onde tem o viaduto e o aeroporto. Pois é. Não levem a mal não, mas foi ali que atuou o degas aqui. Não sei, não. Mas acho que os rapazes se perderam depois que os deixei. Sempre desconfiei que o tal do Bigode era uma farsa. E o Alberto não ficava muito atrás, não. Que me perdoe o tio Júlio, tio da minha mãe que eu nunca conheci…