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Euroestar

Janeiro, 9.
Ano: 2003
Londres.

Escrevo do Euroestar.
Um tanto contrariado, é bem verdade.

Deixamos Londres a caminho de Amsterdã, depois de uma estadia de quatro dias em território inglês. Para ser franco, só ficamos na cidade – e olhe lá. É o décimo quarto dia das férias européias e todos já demonstram um visível cansaço do ir e vir de uma cidade a outra. Há ainda algumas etapas a cumprir Amsterdã, Brugges e Bruxelas, depois voltamos para Zurique, de onde partimos para São Paulo.

Outro complicador é a mais do que justificável preocupação com o montante da brincadeira. Dólar e real andam em baixa constante diante das moedas locais. O euro, por exemplo, bate nos 4 reais e a libra – que fez um estrago considerável na minha conta – anda por volta dos 6 por um.

Cabe a reflexão: o que seria de mim sem os cartões de crédito? Com todo respeito a quem mora em Diadema, não conseguiria sair de São Bernardo rumo à vizinha cidade sem os tais e quais.

II.

Sem questões financeiras, por favor. Não vamos estragar o que resta das férias. Enveredemos por caminhos mais sutis, digamos assim.

Falaremos de Londres, por exemplo. Desculpem, mas a vejo como uma cidade previsível ou reconheço: não sei – e nunca saberei – entendê-la. Não me sugere o mesmo arrebatamento de Paris, a romântica etapa anterior.

Como um turista incidental que sou, não escapei ao trivial, mal-e-mal temperado: fui ver a troca da guarda (Deu sono.), o Big Ben (nome de um elepê de Benjor de 1965, único que falta em minha coleção), a abadia, o parlamento e caminhar às margens do Thâmisa – já sei, já sei, sem ironias; de qualquer forma é melhor do que trafegar pelas marginais Pinheiros e Tietê.

A cidade é outra Babel de etnias, gentes e costumes. Um caleidoscópio, diferente de Paris. Na capital francesa, há uma aculturação natural dos forasteiros. Todos querem ser um pouco ‘parisiense’ – até eu que sou mais sonso. É perceptível. Aqui, não. Os imigrantes não se integram totalmente à nova rotina. Diria: não se ‘britanizam’. Ressaltam traços do país de origem; nas vestes, no ritmo de falar, no jeito de andar.

Muitas vezes, pelas ruas de Londres, procurei e foi raro encontrar o inglês genuíno nesse ‘universo’ de rostos orientais, hindus e chicanos – grupo em que incluiria os brasileiros.

É o que chamam de uma cidade cosmopolita.

III.

Ops.

Neste exato instante, vamos começar a travessia sob as águas. Serão 20 minutos dentro do Eurotúnel que rasga o fundo do Canal da Mancha, a tal maravilha da engenharia mundial.

O outro lado da janela é só escuridão, como se estivéssemos num metrô subaquático.

“Nada a fazer senão esquecer o tempo”.

Inteiramente ocupado por passageiros silenciosos, o comboio fica mais silencioso ainda.

IV.

Um choro de criança interrompe o formalismo e a pose de todos nós. Soa como um alerta de que a vida, mesmo sob as profundezas, continua – e é o maior desafio.

Por falar em desafios.

Além de chegar à outra margem, a tarefa que me escapou: cadê o relatório de viagem?

Durante os dias em que estive em Londres, não escrevi sequer uma linha no pseudo diário de bordo. Não houve um motivo declarado. Não posso sequer alegar excesso de atividades. Aliás, não quero alegar nada. Só que não deu vontade de escrever. Não escrevi – e ponto.

V.

A criança parou de chorar. Ufa!

Então posso, eu próprio, derramar meu desabafo.

O ato de escrever, por vezes ou quase sempre, nos leva a um “Euroestar” muito pessoal. Mergulhamos em nosso próprio oceano de reflexões, medos e decisões. Há dias que o mergulho se dá em águas mais escuras, mais profundas.

Há dias e dias… Outros nem tanto.

Escrever é como submergir aos confins dos sentimentos, recolher alguma saudade, outro tanto de lembranças e querências. Podem ser díspares, etéreas. Ganham, porém, contornos de realidade quando nos levam a outra margem, onde está o leitor. Embora viajem comigo, façam parte deste meu momento, assim que vocês pousarem os olhos nessas linhas pertencem a quem os lê – e não a mim.

Minhas impressões aportaram em terra firme.

Fazem-se a história de todos nós.

VI.

Exemplo.
Uma história que a todos pertence e não é de ninguém?

Reparem nos que se amam. Têm luz própria. Mesmo numa confraternização ou no restaurante. Em meio a uma multidão. Os amantes vivem um mundo peculiar de sorrisos, carícias, beijos. Divertem-se com qualquer bobagem. Respondem com um sim ao melhor da vida, enquanto os “acinzentados” sentem-se no oco do mundo, a trafegar num Euroestar que anda em círculos. Sem saída para a luz do sol.

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