Foto: Reprdução do Facebook de Gilberto Gil
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— Vamos ao que pode…
A voz do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda ecoou pelo Palácio das Convenções do Anhembi, durante uma iniciativa da então gravadora Phonogran de reeditar os gloriosos tempos dos festivais. O evento chamou-se Phono 73 e, por iniciativa do superintendente executivo, o mago André Midani, reuniu todo o milionário elenco da gravadora – além de Chico, Caetano, Gil, Elis, Vinicius, Nara Leão, Bethânia, Gal, Jair Rodrigues, Raul Seixas entre outros.
Os artistas se apresentaram em duplas – por vezes, excêntricas como Caetano Veloso e Odair José, outras por afinidade como Ivan Lins e MPB-4, mas todos, todos mesmo com a proposta de surpreender a plateia.
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A então MPB já não contava com a cumplicidade da televisão para catapultar os grandes nomes à popularidade que alcançaram nos feéricos anos 60. Por isso, Midani quis reviver ainda que, num breve fim de semana, os tempos idos e febris. Reviver, mas não só reviver. Pois o que se havia feito na Record e, posteriormente, na Globo trazia em si uma forma desgastada.
Por isso, ele tentou inovar e criou a história das duplas inusitadas, impensáveis.
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A partir dessa proposta, coube a Chico Buarque cantar a inédita “Cálice” com o até então suposto ‘desafeto’ Gilberto Gil numa apresentação mais do que esperada.
Por dois motivos.
1 – Ainda havia resquícios da história do Festival da Record de 68. Gil estaria na plateia do Teatro Record a comandar (ou simplesmente cúmplice do coro de vaias a Chico e MPB-4 que interpretavam a bem-comportada ‘Bem-Vinda’. Gil e Caetano participaram com a canção “É Proibido Proibir”, defendida pela explosiva Gal Costa.
(No livro “Verdade Tropical”, Caetano Veloso desfez esse equívoco. Mas, àquela época, a versão era de que Chico e os tropicalistas não se topavam.)
2 – A apresentação da então inédita “Cálice”, música que, segundo comentários, não havia escapado à sanha dos brutamontes da censura federal. Mesmo assim, os autores prometiam apresentar unicamente a melodia no palco do Anhembi. Um desafio às ordens postas pelos Senhores do Poder. Em todos os presentes, havia o frisson de testemunhar a mais esse ato de resistência.
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Chico cantou “Baioque” e, logo a seguir, chamou Gil ao palco.
O público prendeu a respiração. Com ar de aparente tranquilidade, os músicos trocaram algumas palavras entre si – o que deu a entender era uma preparação especial para a canção da noite. Começaram os primeiros acordes, e os cantores a acompanhar a canção, mas inventando ali, na hora, uma letra de expressões irreconhecíveis, desconexas. Um certo espanto.
E, de repente, o teatro ficou parcialmente às escuras e os artistas sem som nos microfones.
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Era inevitável a ação dos censores que se fez presente, abrupta e insana, a revelar o momento de obscurantismo que então vivíamos. O súbito corte da rede elétrica deixou a plateia apreensiva.
E agora o que viria?
Diante da indignação dos músicos e para evitar o pior, Chico preferiu contemporizar.
A voz do intérprete se fez ouvir, mesmo sem a amplitude das caixas de som.
— Vamos ao que pode. Ao que pode…
Luzes acesas. Microfones ligados.
E ele cantou a romântica “Noites dos Mascarados”.
— Quem é você… Adivinha se gosta de mim…
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Maio de 1973.
Eu tinha pouco mais de 20 anos – 22 para ser exato –, cursava a faculdade de jornalismo e trazia meu alforje repleto de sonhos e vontades. Mas, também havia espaço para dúvidas e incertezas. Angústias. Sentimentos próprios a quem prepara-se para enfrentar uma realidade que não conhece e lhe é imprevisível.
Creio que, mesmo neste ponto, não devo ter sido tão diferente dos jovens de hoje.
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Junho de 2025.
E lá se vão 52 anos e alguns dias.
Os octogenários Gilberto Gil e Chico Buarque reúnem-se no palco. É o ápice do show/celebração ‘Tempo Rei’ que tem o baiano como protagonista e Chico como convidado para, de certa forma, refazer a canção em pleno século 21. Redimensionar aquele momento histórico.
É um momento tocante, difícil definição para os da minha geração.
(Às vezes, me dou conta de que andamos, andamos e voltamos ao mesmo e ameaçador lugar.)
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Naquela ocasião, estar ali no Anhembi me deu a pertubadora certeza do que seguiria vida afora.
Ser jornalista era a seta.
O alvo:
Dar voz e vez aos injustiçados, aos desvalidos, aos que se propõe construir um Brasil para todos os brasileiros.
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O que você acha?