Assim que voltamos à sala de aula, o inconfundível tomou a palavra.
“Senhores, por favor, atenção…
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Vamos entender definitivamente o que é globalização e como atua sobre os povos do mundo todo.”
Era o próprio Marceleza num de seus melhores momentos.
“A história é simples…
Um desses circos mambembes, que percorrem o País alegrando a plebe ignara em troca de uns trocos, chegou a uma cidade qualquer deste Brazilzão, com o alarde costumeiro. Desfile das atrações pelas ruas empoeiradas e um distorcido alto-falante a propagandear o “memorável espetáculo”.
Por motivos óbvios – entre os quais, a absoluta falta do que fazer – todos os moradores acorreram ao chamado e postaram nas calçadas para ver a caravana que mais lembrava o incrível exército de Brancaleone. Mas, para aqueles cafundós, que sequer aparecia nos mapas, era algo inédito e literalmente extraordinário.
Palhaços, malabares, equilibristas e outros que tais, eles até conheciam de eventuais incursões a cidades próximas. Mas, o circo em questão trazia algo mais que deixou a todos de olhos estatelados: um leão enjaulado que, diziam, seria dominado em cena por uma corajoso domador. Apenas com o estalar de chicotes…
Está certo que na pequena jaula fedorenta em que circulou pela cidade o bicho dormia a sono solto… Talvez fosse parte da preparação para entrar em cena com todas as forças…
Enquanto o circo era montado num terreno baldio, nos arredores da praça central, a notícia se espalhou como praga. Tanto que à noite as arquibancadas e camarotes do circo foram poucos para tanta gente. Entre os espectadores, estava o jovem Joãozinho, rechonchudo filho mais novo do prefeito que, no esplendor dos 18 anos, caíra do cavalo e quebrara a bacia. Ele apareceu amparado numa maca para ver o imperdível espetáculo. Por isso, a menos de cinco minutos de começar o show, o alcaide ainda não havia liberado o documento que liberava o funcionamento do circo.
Ou improvisavam um camarote adequado ao lindinho ou nada…
Rapidamente improvisou-se junto ao palco, na primeira fila, uma trapitonga que inclinava a maca e permitisse Joãozinho assistir o espetáculo. Está certo que ele ficaria preso a uma espécie de cinto de segurança, mas nada tão desconfortável assim.
Depois dos espetáculo, funcionários da Municipalidade o livrariam da jabirosca e providenciariam o retorno tranqüilo.
Todos vaiaram a entrada de Joãozinho e do prefeito Joãozão quando chegaram. Mas isso seria assunto para os jornais do dia seguinte. Os apupos até divertiu a gentarada e foi uma espécie de aquecimento para o que viria…
Um a uma, vieram os palhaços, os malabares, o homem que andava sobre o fio, a mulher barbada, os mágicos, os palhaços de novo, o futebol de cachorrinhos, as bailarinas (fiu-fiu!), os trapezistas e…
… as luzes se apagaram.
E o dono do circo anunciou em portunhol, enquanto o pessoal do circo transformava o picadeiro num grande jaula:
“Preparem sus coracions. És la hora de que tantos de ostedes esperam. La exibicion de o Leon Arquimedes, o terrible, e su domador Aiquemedô…
Ouviu-se um grande “oh” na platéia. Todos seguraram a respiração.
Quando as luzes se acenderam, lá estava ele. Aiquemedô, com uma cadeira na ao esquerda e um chicote na direita, a fazer reverência para o público.
Deus é justo, mas nada comparável à roupinha do tal domador.
Alguns levantaram suspeitas.
Mas, foram só comentários. Sabem como é esse pessoal de cidade pequena. Fala mesmo…
Todo o burburinho cessou quando Arquimedes, o leão, entrou em cena.
Diga-se entrou decidido. Ouviu-se o primeiro e único estalar do chicote do domador. Num golpe infeliz, Aiquemedô deixou a tira do chicote enroscar na pata da fera que, num movimento brusco, lhe arrancou o dito cujo das mãos. Depois, com outro golpe, o desarmou da cadeira e fera e domador ficaram frente a frente…
Esperto, Aiquemedô saiu por onde Arquimedes entrou…
O leão se atirou sobre as grades. Derrubou uma…
— Óhhhhh!!!
… outra
– Óhhhhh!!!
… e outra.
– Óhhhhh!!!
O bicho solto, todos correram.
O circo virou um pandemônio…
O leão:
“Uahuahuahuahuahuah!”
O povão, no alto das arquibancadas:
— Óhhhhh!!!
Até que alguém se lembrou e lembrou ao leão do Joãozinho, preso ali, na primeira fila, sem poder correr.
– Coitado do Joãozinho!
– Tadinho do Joãozinho!
– Meu Deus, o Joãozinho!
Arquimedes parece que se acalmou. Lentamente, como caminham os leões que sabem o que querem para o jantar, o bicho de encaminhou em direção ao Joãozinho. O prefeito Joãozão, ao antever a cena, desmaiou. E o povo, à distância, continuou:
– Coitado do Joãozinho!
– Tadinho do Joãozinho!
– Meu Deus, o Joãozinho!
O leão parou a uns cinco metros do rapaz. Olhava-o fixamente. Já não urrava. E a turma:
– Coitado do Joãozinho!
– Tadinho do Joãozinho!
– Meu Deus, o Joãozinho!
Foi quando ouviu-se a voz desesperada de Joãozinho, pondo ordem na casa.
– Gente, por favor, vamos deixar o leão escolher por conta própria…
Pois, então, rapaziada, entenderam? Globalização é isso…”