Eu e o Marceleza, o próprio, inigualável, inconfundível, bolamos um curso de jornalismo regional para estudantes da área, profissionais e afins. A idéia era dar ao curso um caráter de extensão e complementação acadêmica. Assim quem quisesse desenvolver um projeto pessoal poderia ter noções básicas de como funciona um órgão de informação regional, dificuldades, trâmites legais para montar um pequena empresa de comunicação, questões éticas, postura crítica etc etc etc.
Em tempos de banana engolindo macaco, redações dos jornalões cada vez menores, patrões que só vêem o business, editores à beira de um ataque de nervos e pouco dim-dim na praça, eu e o inigualável achamos interessante abrir essa porta para a rapaziada – e outros que apareceram não tão rapazes assim em idade – e juntar nossa experiência. Eu, que trabalhei vinte e tantos anos em jornal de bairro. Ele, que saltou de galho em galho, pelas redações, de Ubatuba a Taubaté sem tirar o pé do Rio de Janeiro, onde o seu Flu é razão e vida e outro tanto de desilusão…
— Fala aí, meu querido…
Foi assim que ele me apresentou à pequena turma – uns 30 alunos, se tanto – numa sala fria, num prédio ali na Santa Cecília, onde ministramos a primeira aula do curso, sob os auspícios – e palavra bonita! – do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Seriam quatro ou cinco manhãs de sábado em que dividiríamos nossos saberes com um pessoal que, para nossa surpresa, vinha de várias cidades paulistas.
— Platéia heterogênea, mermão…
Diferente, sim. Os alunos, pela própria vivência em regiões distintas, tinham níveis diferentes, formação diversifica e interesses os mais contrastantes, entre eles. Um queria montar um jornal em Birigui ou algo assim. Outro queria ser vereador na sua pequena Palmital. Um terceiro estudava ali perto, no Mackenzie, não tinha nada para fazer na manhã de sábado e se inscreveu no curso.
Eram assim – e tantos mais havia. Mas, todos demonstravam atenção e seriedade n proposta de aprender – o que deu as aulas uma dinâmica bem legal. Até que chegou o dia de discutirmos os conceitos de regionalidade e globalização. Como essa disputa se antepõe numa empresa jornalística, como não podemos fechar os olhos para ela e táticas de sobrevivência do local sobre o mundial…
— Para ser universal, basta falar da sua aldeia – soltei com algum sucesso, mas pouca compreensão no início da minha explicação. Repetia na verdade uma frase de Dostoyeviski que ouvi um dia, lá nos anos 70, quando entrevistei o jornalista Mino Carta.
Marceleza fez cara de aprovação. E passou a falar sobre globalização e universalização, diferenças, perdas e ganhos para o mundo moderno.
Em um dado momento, percebemos que nossas palavras ecoavam vazias na sala. Os alunos se transformaram em badejos em exposição nas geladeiras dos supermercados, com aquele olhar vidrado de quem já foi dessa para melhor.
Não estão entendendo nada, disse baixinho para o amigo. Que resolveu rápido:
— Então, senhores, vamos dar uma paradinha de uns 15, 20 minutos para o café. Na volta, vou lhes contar uma história de como se dá o fenômeno da globalização na cabeça das pessoas.
II.
Assim que voltamos à sala de aula, o inconfundível tomou a palavra.
“Senhores, por favor, atenção…
Vamos entender definitivamente o que é globalização e como atua sobre os povos do mundo todo.”
Era o próprio Marceleza num de seus melhores momentos.
“A história é simples…
Um desses circos mambembes, que percorrem o País alegrando a plebe ignara em troca de uns trocos, chegou a uma cidade qualquer deste Brazilzão, com o alarde costumeiro. Desfile das atrações pelas ruas empoeiradas e um distorcido alto-falante a propagandear o “memorável espetáculo”.
Por motivos óbvios – entre os quais, a absoluta falta do que fazer – todos os moradores acorreram ao chamado e postaram nas calçadas para ver a caravana que mais lembrava o incrível exército de Brancaleone. Mas, para aqueles cafundós, que sequer aparecia nos mapas, era algo inédito e literalmente extraordinário.
Palhaços, malabares, equilibristas e outros que tais, eles até conheciam de eventuais incursões a cidades próximas. Mas, o circo em questão trazia algo mais que deixou a todos de olhos estatelados: um leão enjaulado que, diziam, seria dominado em cena por uma corajoso domador. Apenas com o estalar de chicotes…
Está certo que na pequena jaula fedorenta em que circulou pela cidade o bicho dormia a sono solto… Talvez fosse parte da preparação para entrar em cena com todas as forças…
Enquanto o circo era montado num terreno baldio, nos arredores da praça central, a notícia se espalhou como praga. Tanto que à noite as arquibancadas e camarotes do circo foram poucos para tanta gente. Entre os espectadores, estava o jovem Joãozinho, rechonchudo filho mais novo do prefeito que, no esplendor dos 18 anos, caíra do cavalo e quebrara a bacia. Ele apareceu amparado numa maca para ver o imperdível espetáculo. Por isso, a menos de cinco minutos de começar o show, o alcaide ainda não havia liberado o documento que liberava o funcionamento do circo.
Ou improvisavam um camarote adequado ao lindinho ou nada…
Rapidamente improvisou-se junto ao palco, na primeira fila, uma trapitonga que inclinava a maca e permitisse Joãozinho assistir o espetáculo. Está certo que ele ficaria preso a uma espécie de cinto de segurança, mas nada tão desconfortável assim.
Depois dos espetáculo, funcionários da Municipalidade o livrariam da jabirosca e providenciariam o retorno tranqüilo.
Todos vaiaram a entrada de Joãozinho e do prefeito Joãozão quando chegaram. Mas isso seria assunto para os jornais do dia seguinte. Os apupos até divertiu a gentarada e foi uma espécie de aquecimento para o que viria…
Um a uma, vieram as atrações: os palhaços, os malabares, o homem que andava sobre o fio, a mulher barbada, os mágicos, os palhaços de novo, o futebol de cachorrinhos, as bailarinas (fiu-fiu!), os trapezistas e…
… as luzes se apagaram.
III.
E o dono do circo anunciou em portunhol, enquanto o pessoal do circo transformava o picadeiro num grande jaula:
“Preparem sus coracions. És la hora de que tantos de ostedes esperam. La exibicion de o Leon Arquimedes, o terrible, e su domador Aiquemedô…
Ouviu-se um grande “oh” na platéia. Todos seguraram a respiração.
Quando as luzes se acenderam, lá estava ele. Aiquemedô, com uma cadeira na ao esquerda e um chicote na direita, a fazer reverência para o público.
Deus é justo, mas nada comparável à roupinha do tal domador.
Alguns levantaram suspeitas.
Mas, foram só comentários. Sabem como é esse pessoal de cidade pequena. Fala mesmo…
Todo o burburinho cessou quando Arquimedes, o leão, entrou em cena.
Diga-se entrou decidido. Ouviu-se o primeiro e único estalar do chicote do domador. Num golpe infeliz, Aiquemedô deixou a tira do chicote enroscar na pata da fera que, num movimento brusco, lhe arrancou o dito cujo das mãos. Depois, com outro golpe, o desarmou da cadeira e fera e domador ficaram frente a frente…
Esperto, Aiquemedô saiu por onde Arquimedes entrou…
O leão se atirou sobre as grades. Derrubou uma…
— Óhhhhh!!!
… outra
– Óhhhhh!!!
… e outra.
– Óhhhhh!!!
O bicho solto, todos correram.
O circo virou um pandemônio…
O leão:
“Uahuahuahuahuahuah!”
O povão, no alto das arquibancadas:
— Óhhhhh!!!
Até que alguém se lembrou e lembrou ao leão do Joãozinho, preso ali, na primeira fila, sem poder correr.
– Coitado do Joãozinho!
– Tadinho do Joãozinho!
– Meu Deus, o Joãozinho!
Arquimedes parece que se acalmou. Lentamente, como caminham os leões que sabem o que querem para o jantar, o bicho de encaminhou em direção ao Joãozinho. O prefeito Joãozão, ao antever a cena, desmaiou. E o povo, à distância, continuou:
– Coitado do Joãozinho!
– Tadinho do Joãozinho!
– Meu Deus, o Joãozinho!
O leão parou a uns cinco metros do rapaz. Olhava-o fixamente. Já não urrava. E a turma:
– Coitado do Joãozinho!
– Tadinho do Joãozinho!
– Meu Deus, o Joãozinho!
Foi quando ouviu-se a voz desesperada de Joãozinho, pondo ordem na casa.
– Gente, por favor, vamos deixar o leão escolher por conta própria…
Pois, então, rapaziada, entenderam? Globalização é isso…”