"Quem não compreende um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação" (Mário Quintana)
01. Dego amava Dagmar, mas era oficialmente casado com Deolinda. Houve tempo que o casal De-De vivera os sonhos possíveis e impossíveis de uma grande paixão. Tanto que, para celebrar união infinita, tão única, tão verdadeira, não se intimidaram em batizar os três rebentos que chegaram com os seguintes nomes: Desidério Júnior, o primogênito; Deomar, a do meio, e Deosol, a rapa do tacho que chegou para iluminar aquele lar abençoado.
02. Só que o tempo tem lá suas sinuosidades. E numa dessas curvas do destino Dego trombou com Dagmar — e a vida de ambos nunca mais foi a mesma. Dego não podia ver aquela "morena 400 talheres" que perdia o juízo e a razão. Aliás, ouvira a definição de um amigo que a vira passar e sentiu-se, além de apaixonado, que havia perdido o medo da vida. Era um ser privilegiado, pois já navegava naquelas águas que todo homem um dia deseja banhar-se. Enquanto Deolinda (agora já nem tanto) cuidava do crescimento dos 3 Ds, cada dia mais lindos e inteligentes, o homem fechou uma promessa para consigo mesmo: por maior que fosse a paixão, acontecesse o que acontecesse, jamais abandonaria a família…
03. De novo o tempo e suas sinuosidades. Dego não tinha qualquer dúvida quem era "a mulher da sua vida". Dagmar, por sua vez, também se dizia uma mulher feliz. Quer dizer quase inteiramente feliz. Faltava-lhe apenas urna coisa: ter o Dego só para si. Assim se sentiria uma mulher normal, como tantas. Fim de semana, Dia dos Namorados, Natal, Reveillon seriam datas, ai sim, comemoráveis. Mas, o que mais a incomodava era o aniversário. Todos os anos passava sozinha ou, no máximo, no máximo, pegava um filminho com uma amiga de infortúnio.
04. Numa noite que Dego chegou todo faceiro, a morena se invocou com a alegria alheia. Até porque não via motivo para tanto sorriso. Já estavam nessa há três anos e nada parecia mudar. Dego vinha quando podia e depois desaparecia. Ficava só nos telefonemas. Seu aniversário (29 de abril) era na semana que vem. Não esquentou muito para soltar a primeira cobrança: "Quero você aqui terça à noite. Pra ficar… Senão, pode esquecer." Queria uma prova de amor.
05. Dego sentiu o baque. E, como sempre nessas horas, recorreu a um velho amigo. Que era confidente e quase-psicólogo. E que, de passagem, nem se alterou com o drama. Disse apenas para Dego visitá-lo no fim da tarde de terça, acompanhada de Deolina e as crianças. Um detalhe: só ele entraria para buscar um papel qualquer. A família esperada no carro…
06. Na terça, a ansioso Dego contava os minutos em voz alta. Chamou o pessoal, pegou um envelope pardo e decretou: ‘Vamos a uma pizzaria. Primeiro, tenho que passar no escritório de um amigo. Todos entusiasmaram-se. Ele, inclusive…
07. Minutos depois, arrastando a sandália da moda, desceu do carro com o tradicional "é-só-um-segundinho". Entrou esbaforido, sem tocar a campainha. "E aí, cara, o que vamos fazer?" O amigo riu e perguntou como estavam as coisas. Ele não entendeu e cobrou a solução. Como resposta, ouviu um lenga-lenga sobre futebol, a seleção de Parreira; Será que ele não havia entendido direito ou o amigo havia esquecido. Tentou retomar a história. Mas, nada. Era como se falasse grego. Ficou furioso. Ele o considerava um irmão. Pensava que entendia seus problemas. E agora isso.. .Saiu batendo o portão e dizendo em voz alta, fora de si: Que palhaçada!
08. Foi quando o sábio-amigo apareceu na calçada e gesticulou para que Dego esperasse. Fora de si, estava ligando o carro quando Deolinda pediu que esperasse. Queria saber o que estava acontecendo: desculpe, comadre, o compadre ficou nervoso porque pedi a ele que me ajudasse a fechar a declaração de imposto de renda que está complicada. Minha empresa não vai bem, sabe como é a crise… Vai dar um trabalhão. Amanhã lhe devolvo o homem são e salvo. Não queria estragar o passeio de vocês. Mas, acredite, é unia emergência. Amanhã, termina o prazo.
09. Foi o aniversário mais lindo da minha vida suspirava Dagmar na manhã ensolarada de quarta, dia 30. Dego dormia no quarto ao lado o sono dos contentes. Sequer lembrou que não havia feito a própria declaração do IR…