Talvez seja imaginação minha…
Talvez seja milagre…
II.
Os sinos da igreja Nossa Senhora da Glória replicam.
Meio-dia.
Fazem dueto com o apito da fábrica de chapéus Ramenzzoni.
Hora de almoço.
III.
O sol a pino banha de luz a movimentação do lugar.
Vejo o ir-e-vir ruidoso dos bondes Praça João Mendes pela rua Lavapés.
E lá vem as tecelãs da Vetorazzo aproveitar a folga do horário.
Caminham lado a lado e falam e falam…
Comentam, entre outros assuntos, sobre os trágicos amores das novelas da rádio São Paulo.
Riem e baixam os olhos quando passam em frente ao Bar Astória, onde os rapazes estão atentos e lhes fazem respeitosa referência.
IV.
Eles combinam o jogo de ‘patrão e sotto’ para a noite.
Mas, param a conversa ao vê-las.
Ajeitam o topete e capricham na panca de Humphrey Bogart.
Esperança de fisgar uma daquelas ‘sereias’.
Esses, sim, são amores possíveis.
V.
Junto a outros escolares, reconheço por ali o menino Tchinim.
É o fim das aulas da manhã do Colégio Nossa Senhora da Glória (onde ele estuda), do Liceu Siqueira Campos e do Grupo Escolar Oscar Thompson, todos nas redondezas da Lavapés com a rua Francisco Justino de Azevedo.
Gosto de vê-lo todo orgulhoso com o novo blusão do Glória que ostenta. É vinho com gola e punhos amarelos. Uma combinação nada comum para os pacatos padrões dos anos 50.
Para o garoto sonhador, sei que é a melhor hora do dia.
VI.
Sua rotina é puro delírio.
Sai do colégio marista, e corre para a casa dos avós, ali pertinho.
Pede a bênção, e fica pela casa modesta, solto, a experimentar a comidinha da vó Ignês.
Maravilha-se admirando a coleção de ternos do tio Neno.
Diverte-se a valer com as lorotas que o vô Carlito gosta de contar.
VII.
Não demora, resolve ir embora.
A mãe o espera para ‘almoçar de verdade’.
Ele mora na Muniz de Souza, a poucos quarteirões.
Caminha a passos lentos, enredado nos próprios devaneios.
VIII.
Já quis ser bombeiro, tarzan, marinheiro, representante comercial (igual ao pai), jogador de futebol…
A mãe quer que seja padre.
Mas, ele não leva jeito para isso.
Não tem nem dez anos – e já viveu tantos amores imaginários.
Cidinha, Maria do Carmo, Ligia…
IX.
A irmã mais velha, a Doroti, tem uma amiga que é uma tentação.
Linda.
Parece a Brigite Bardot, juro!
Tem o apelido de “Ia” – e o chama brincando de ‘maridinho’.
Está apaixonado.
X.
É o único e definitivo pecado de Tchinim…
(Desconfio que nunca se livrará dele.)