Foto: Arquivo Pessoal
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Talvez seja apenas imaginação minha.
Talvez seja pura magia do cinema falado.
Não me pergunte como, mas estou em cena…
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Volto no tempo.
Os sinos da igreja Nossa Senhora da Glória repicam.
Meio-dia.
Fazem dueto com o apito da fábrica de chapéus Ramenzzoni.
Hora de almoço.
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O sol a pino banha de luz a movimentação do lugar.
Vejo o ir-e-vir ruidoso dos bondes com destino à Praça João Mendes pela rua Lavapés.
E lá vem as tecelãs da fábrica Vetorazzo aproveitar a folga do horário.
Caminham lado a lado e falam e falam…
Comentam, entre outros assuntos, sobre os trágicos amores das novelas da rádio São Paulo.
Riem e baixam os olhos quando passam em frente ao Bar Astória, onde os rapazes estão atentos e lhes fazem respeitosa referência.
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Eles combinam o jogo de ‘patrão e sotto’ logo mais à noite.
Mas, param a conversa ao vê-las.
Ajeitam o topete e capricham na panca de Humphrey Bogart.
Esperança de fisgar uma daquelas ‘sereias’.
Esses, sim, são amores possíveis.
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Junto a outros escolares, reconheço por ali o menino Tchinim.
É o fim das aulas da manhã do Colégio Nossa Senhora da Glória (onde ele estuda), do Liceu Siqueira Campos e do Grupo Escolar Oscar Thompson, todos nas redondezas da Lavapés com a rua Francisco Justino de Azevedo.
Me divirto ao vê-lo todo orgulhoso com o novo blusão do Glória que ostenta. É de malha, vinho com gola e punhos amarelos. Uma combinação nada comum para os pacatos padrões daquele final dos 50.
Se bem conheço aquele garoto sonhador, sei que é a melhor hora do dia.
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Sua rotina é puro delírio.
Sai do colégio marista e corre para a casa dos avós, ali pertinho.
Pede a bênção, e fica pela casa modesta, solto, a experimentar a comidinha da vó Ignês.
Maravilha-se admirando a coleção de ternos do tio Neno.
Diverte-se a valer com as lorotas que o vô Carlito, sempre à janela, gosta de contar.
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Não demora, resolve ir embora.
A mãe o espera para ‘almoçar de verdade’.
Ele mora na Muniz de Souza, a poucos quarteirões.
Caminha a passos lentos, enredado nos próprios devaneios.
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Já quis ser bombeiro, quis ser Tarzan que viu nas telas do cinema, depois pensou em ser marinheiro, representante comercial (igual ao pai) ou jogador de futebol… Que mais?
A mãe quer que seja padre.
Mas, ele não leva jeito para isso.
Ali por volta dos 11, 12 anos – e já viveu tantos amores imaginários.
Cidinha, Maria do Carmo, Ligia…
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A irmã mais velha, a Doroti, tem uma amiga que é um deslumbre.
Linda.
Parece a Brigite Bardot, juro!
Tem o apelido de “Ia” – e o chama brincando de ‘maridinho’.
Inevitável.
Está apaixonado.
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É o único e definitivo pecado de Tchinim…
(Desconfio que nunca se livrará dele.)
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*Texto publicado originalmente em julho de 2011, descaradamente inspirado no filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen e nas minhas mais tenras lembranças (das rotas de fuga que conheço, a que mais prezo).
O que você acha?