Autor: Valdir Boffetti
Vi o Fernando pela última vez no dia 24 de agosto.
Ele estava sozinho no quarto do hospital Bosque da Saúde e me recebeu contente. Esperava a visita do pai que chegaria logo, para juntos assistirem ao jogo do Palmeiras, na TV.
Ao me ver, tirou a máscara de oxigênio.
Eu lhe disse que estava com aparência melhor. Então fez a pergunta se achava que ele tinha engordado um pouco – concordei.
Era verdade.
Levei gibis do Chico Bento e do Cebolinha. Antes, disse-lhe que era um novo livro sobre telejornalismo.
– Ohhhh, Valdir! Olha o que tem aí nesta gaveta!
Eram diversos exemplares da revistas MAD.
II.
Mudamos de assunto.
Ele se empolgou em contar, em detalhes, a viagem que fez a Nova York em 2001. No início, preveniu que o relato não iria passar de quinze minutos, mostrou o relógio e me pediu para avisar se “estourasse” o tempo – o ritual do fazer telejornalismo sempre teve papel importante na vida dele, até na linguagem.
Falamos por mais de uma hora. Contou da alegria de ouvir a música que mixou ser tocada em uma rádio online nova-iorquina, das pessoas que conheceu por lá, das lojas de discos que visitou, do quanto gostava de morar em São Paulo e andar pela cidade em dias de jogos do Verdão. Falou do filho Flávio, da preocupação com a carreira escolhida por ele. Da mãe que nunca o havia visto numa situação assim. Falou do plano de reformar a casa – sinal aparente da confiança em tocar o barco depois da tempestade.
Notei, na cabeceira da cama, uma relação de tarefas a fazer que ele enumerou item a item com a conhecida letra maiúscula. Coisas a serem ditas e realizadas ou apenas lidas um dia, como memória. Depois, recolocou a máscara. Estava disposto, mas ainda lhe faltava fôlego.
III.
Entendi que era hora de ir.
Sai confiante na sua volta. Pensei na barra que estava segurando. Na falta que faz uma amizade a mais nessas horas. Lembrei que já eram quinze anos de convivência. Mas ainda éramos quase amigos.
Dividimos turmas, calendários didáticos, reuniões pedagógicas e impressões ligeiras sobre a vida. Ele foi uma única vez à minha casa. Eu nem retribui a visita.
Jogamos sinuca uma vez. Jogamos futebol uma vez.
De vez em quando falávamos dos nossos filhos que têm a mesma idade e estudaram no mesmo colégio.
Vez ou outra, na presença dele, eu disse aos nossos alunos que ele tinha sido um professor prodígio, que começou a dar aulas na Meto ainda muito jovem e que até eu, ao retomar o curso interrompido em fins dos anos 80, havia sido seu aluno.
Ele sempre fazia a ressalva:
– Mas nós temos quase a mesma idade!
IV.
Fernando gostava de mostrar sua identidade com a foto de cabelos vastos e encaracolados.
Sempre foi um colega generoso. Dividiu os programas de aula, as tabelas de cronogramas, o senso de organização.
Conversamos várias vezes sobre os rumos do ensino de tele na Meto. Ele, sempre um pouco mais apocalíptico. Outras vezes questionei a sua matemática tão precisa na correção das provas, sua exigência com a qualidade máxima das produções dos alunos.
– Fernando, vamos avaliar também o processo?
Ele respondia altivo com os exemplos de ex-alunos e alunas formados na Meto e que hoje ocupam posição e destaque na várias emissoras de TV. Orgulho que ele sempre exibiu com justiça.
– Eu sou filho de português! Outra defesa que sempre invocava quando lhe questionavam o jeito durão.
V.
Além da visita no hospital, cruzei com o Fernando apenas uma vez neste semestre.
Atendíamos grupos de TCC. Notei-o ainda mais magro. Perguntei apressadamente se tinha lido o email com as mudanças no projeto integrado do sexto semestre. Nem perguntei como estava, como foram as férias…
Ele respondeu que tinha gostado da mudança e que precisava falar comigo.
Andamos demais ocupados e não temos tido tempo para prestar atenção nas coisas fundamentais. O que vai em cada pessoa, por exemplo.
Eu devia ter apressado aquela conversa com o amigo Fernando.