Foto:Jô Rabelo
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Éramos o que se dizia então ‘moleques de rua’.
Cambuci, bairro operário paulistano.
A molecada se dividia em times de futebol – e ruas.
Éramos os ‘encrencas’ da rua Muniz de Souza.
Tínhamos entre nove e doze anos.
Aprontávamos bem.
Dentro dos conformes da idade e do que nos era (quase sempre) permitido.
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Vez ou outra, alguém da vizinhança chamava a ‘baratinha’ da Rádio Patrulha para acalmar a bagunça que fazíamos com gosto.
Um vidro de janela quebrado pela bola de borracha, a mãe zelosa em fazer dormir o lindo bebê que acabara de nascer, alguma altercação no rachão da calçada, eventuais confrontos com a turma da outra rua, e por aí íamos…
Eram esses alguns dos legítimos motivos das reclamações e do chamado aos homens da lei.
Quando pintava a viatura (um fusquinha preto e branco) na esquina da Almeida Torres, era um furdúncio. Uma correria.
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Medaço de parar no Juizado de Menor.
“Deixo você mofando lá até os 18 anos. Ou ponho num colégio interno… Quer pagar para ver?”
Era a ameça que nossos pais, entre preocupados e constrangidos, nos faziam.
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Acreditávamos, mas esquecíamos rápido.
No dia seguinte, na volta do colégio, vínhamos tocando a campainha das casas, mexendo com as garotas, cantando canções com obscenidades, dando estilingada em passarinhos e gatos… enfim, coisiquinhas do gênero.
Tínhamos de manter a nossa fama de mau.
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O mais terrível dos nossos era o Tiança.
Devia ter uns nove anos. Pequenino, mais para o rechonchudo, rosto de criança-criança (palavra que não conseguia dizer corretamente, pois tinha a língua presa; daí o apelido Tiança), ele aprontava pra dedéu.
Os adultos – acreditem! – não acreditavam que aquela figura de anjinho barroco ‘tocava o terror’, como diz hoje minha sobrinhada.
Era uma candura de menino.
“Impossível”, dizia o Seo José da Venda.
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Todas as tardes, o Tiança chegava à porta do humilde empório, caprichava na carinha de triste, e pedia um pedaço de pão.
Seo José franzia o cenho, desconfiava…
Mas, não deixava de atendê-lo.
A cena se repetia.
– Tô com fome. Tem um pãozinho, pra mim? Pode ser de ontem mesmo…
Quem disse que o Seo José resistia?
– Tome lá, garoto. Na escola, não lhe dão merenda, não?
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Num dia qualquer, o Tiança, com ares sapecas, bateu até a vendinha como de praxe.
Mas, no lugar de um pedaço de pão, ousou pedir um pedaço de bolo, daqueles bem grandões, e um ‘caçulinha’.
Mas, o que é que é, garoto? Tá abusando…
– Dá um pedaço de bolo, vá… E um guaranazinho pra acompanhar.
– Pensa o quê o miúdo? Por que isso agora?
– Ô Seo José, não regula não. Dá um pedaço de bolo e um ‘caçulinha’ pra mim. Por favor. É meu aniversário, pôxa!
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Definitivamente, Tiança era um só uma criança.
Ganhou o bolo, o guaraná e o coração do portuga.
Mas, quem disse que ele, longe dos olhos do nosso emotivo vendeiro, parou de aprontar?
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O que você acha?