Aproveito a saga de Belchior/Wally para inaugurar a série Se o Mundo Não Mudou Para Melhor, Não Foi Por Falta de Trilha Sonora.
Comento hoje o disco “Alucinação”, segundo disco solo de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, lançado em 1976, com grande repercussão entre a crítica e o público.
Foi o grande momento da carreira de Belchior. Em menos de dois meses, as vendagens superaram a marca de 50 mil cópias. Um grande feito para época e, principalmente, para um autor jovem, como Belchior, que assim, como seus contemporâneos (Ivan Lins, Alceu Valença, João Bosco, Melodia, entre outros), carregava o estigma de hermético e maldito.
Para deixar essa inconveniente condição, é bem verdade, o cantor/compositor contou com o sólido aval de intérpretes consagrados como Roberto Carlos que gravou “Mucuripe” (parceria com Fagner), Jair Rodrigues (“Galos, Noites e Quintais”) e, principalmente Elis Regina que incluiu com rara felicidade duas de suas mais belas canções (“Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”) no extraordinário show “Falso Brilhante”.
Nascido em pleno sertão – Sobral, norte do Ceará – Belchior é o décimo terceiro dos 23 filhos do bodegueiro sr. Otávio e sua esposa, dona Lourdes. Despertou para a música em 1967, quando cursava Medicina e ouviu os Beatles e Bob Dylan. Também conheceu o Tropicalismo, de Gil, Caetano e Tonzé. Foi o suficiente para detonar a efervescência crítica/criativa e impulsiona-lo a trocar as lições de anatomia pelas aulas de música.
Já no Sulmaravilha, ele venceu o Festival Universitário da Canção do Rio de Janeiro, em 1971. A partir daí, os obstáculos naturais da época – censura, falta de oportunidade no rádio e na TV, concorrência com os modismos da época etc – só foram superados pela infatigável determinação dos autores da chamada Geração de Briga de impor um trabalho contundente, instigante e renovador.
Belchior tinha então 29 anos. Já estava vivido e curtido nos becos e bocas do mundo. E registrava, em seus versos instigantes, um painel de seu tempo.
Na faixa-título do disco, falava das agruras do cotidiano:
“A minha alucinação
é suportar o dia a dia
E o meu delírio é
a experiência com coisa reais”
Em ‘Como Nossos Pais’, fazia-se emblemático aos discutir as andanças e os tropeços da sua/minha geração:
“Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito
Tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como nossos pais”
Inquietações que transformou em canções em que a melodia – uma hábil mistura de elementos do blues, das baladas dylianas com as cortantes seqüências de ritmos nordestinos – serve de fundo para deflagrar sentimentos e denúncias de um tempo, ao mesmo tempo, romântico, quixotesco e pertubador.
A voz áspera e, por vezes, inadequada ressalta a autenticidade do que diz o poeta.
À época, quando ainda era possível encontra-lo, Belchior definiu o disco como “um caderno de memória de um jovem que sofreu todas as crises de sua geração e não se conformou com elas”.