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Nó, dor e pranto*

por Paloma Minke

“O risco é um marco divisório.
Para contar a nossa história,
temos que enfrentá-lo e vencê-lo.
Nada de super-homem ou mulher-maravilha.
Bons jornalistas, apenas, com um pouco
de audácia e bastante determinação”

Percival de Souza não se sentiu um super jornalista ao subir o morro da Vila Cruzeiro, na periferia do Rio de Janeiro, num dia qualquer de 2002. Naquele momento, não lhe importavam os quatro prêmios Esso que havia conquistado pela brilhante carreira em reportagens investigativas. Não vinha ao caso toda a sua trajetória no Jornal da Tarde, o qual ajudou a fundar e defendeu mesmo nos difíceis tempos da censura nos anos 1970. Nem mesmo a lembrança que tanto o orgulha, do início de carreira, quando ainda jovem recebeu do então diretor de redação do JT, Mino Carta, a missão de criar um novo formato de cobertura criminal que revolucionaria a imprensa, amenizaria a dor daquele momento.

Encolhido na caçamba de uma caminhonete, Percival sentiu-se profundamente humilhado. Mas não tinha escolha, sabia que se fosse descoberto, seria executado também. Era o sacrifício a ser feito pelo grande amigo Arcanjo Tim.

“Subir ao perigoso local onde Tim foi morto pode parecer um delírio de minha parte. Mas ao me disfarçar dentro de um veículo de entrega de mercadorias em mercearias, eu me sentia seguro”. Nem mesmo à mulher comunicou a sua arriscada missão. “Coisa minha – eu e Deus”, diz o jornalista. “Mas nada fiz loucamente, e sim conscientemente. Conhecendo meus limites”.

Mais que colega de profissão – ambos dedicavam-se ao jornalismo investigativo – Percival tornou-se amigo pessoal de Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, o Tim Lopes. O breve intervalo de tempo entre o brutal assassinato do jornalista e o processo de produção do livro, ambos no mesmo ano, certamente contribuiu para as emoções à flor da pele depositadas em cada uma das páginas do “Narcoditadura”, desabafo do jornalista em resposta ao crime. O companheiro Tim havia sido executado durante a produção de reportagem que denunciava a exploração sexual de menores em bailes funk no morro.

Foram seis meses de intensa dedicação à história, apuração dos fatos e reconstituição de cenários, dentre os quais, a penosa e indispensável visita à cena do crime. “Além do nó na garganta, dor e angústia, alma sangrando, emoção ao tomar conhecimento dos fatos, chorar em vários locais, principalmente o da execução brutal, e também não conter as lágrimas na hora de enfrentar o teclado”, relembra Percival.

A insatisfação com a cobertura da mídia sobre o fato, que intimidou outros colegas de profissão a fazê-la de forma mais aprofundada, deu-lhe forças para conciliar emoções e o conhecimento acumulado nas muitas coberturas jornalísticas, e traçar o perfil do jornalismo investigativo e bastidores do crime organizado em sua obra. “Euclides da Cunha chamou o seu clássico “Os Sertões” de livro-vingador, para descrever o massacre promovido em Canudos por uma quarta expedição militar, que dizimaria Antonio Conselheiro e centenas de seguidores. Ele se indignou com a degola em massa promovida por militares enfurecidos. Eu me indignei com o esquartejamento e a carbonização de Tim”, justifica.

São várias as experiências que vem à tona quando Percival é questionado sobre o momento mais marcante de sua carreira no jornalismo. Mais de 40 anos dedicados à profissão lhe proporcionaram momentos memoráveis, como a cobertura para o Jornal da Tarde na Casa de Detenção de São Paulo. Nos anos 70, o jornalista acompanhou a vida e a rotina dos detentos para registrar a história daqueles que lá estavam – na época num total de 6 mil prisioneiros, até então, o maior presídio do mundo. A série de reportagens para o periódico logo se transformaria no livro “A Prisão”. Nos anos 90, o médico sanitarista Dráuzio Varella adotou estratégia semelhante para escrever o seu “Carandiru”.

A relação de Percival com o jornalismo vem desde a mais tenra idade. Com o incentivo do pai, que o presenteava com diversas obras, o jovem incorporou à vontade de ser jornalista, o gosto pela literatura.

Iniciou como contínuo na redação dos jornais “Folha da Manhã”, “Folha da Tarde” e “Folha da Noite”, onde teve a oportunidade de conviver com Ennio Pesce, Henrique Metteucci, Roland Sierra, Neil Ferreira, Murilo Felisberto, José Hamilton Ribeiro, Woyle Guimarães e Ewaldo Dantas Ferreira. Tantos nomes do jornalismo o fizeram encantar-se de vez pela profissão. “Enfiei na cabeça que queria ser, algum dia, um profissional como eles. Era o meu sonho”.

Os primeiros ideais beiravam à utopia.

“Defender a justiça, a equidade, os interesses dessa sociedade carcomida, ser a voz dos calados pelo sistema e as circunstâncias que nos moldam”.

Apesar das dificuldades, Percival mantevem as mesmas convicções da juventude. “Como diria o escritor Victor Hugo, mudei muito, mas sustentei princípios. O autor de “Os Miseráveis” ensinou: ‘troque suas folhas, mantenha intactas suas raízes’. É o que procuro fazer”, diz.

Nas décadas de 60 e 70, enfrentaria a perseguição política, principalmente pelas reportagens de denúncia sobre o Esquadrão da Morte, uma organização composta por policiais, com o objetivo de exterminar “os supostos “bandidos comuns” e “limpar” a sociedade. Além do Esso, recebeu o Prêmio Vladimir Herzog (pelo “Narcoditadura”) e um Prêmio Abril de Jornalismo.

Os perigos da profissão e, principalmente, da área do jornalismo na qual atua, não o desanimam. Para ele, é preciso saber administrar o risco e não há como deixar de sentir o medo. “O segredo é conciliar a racionalidade e emoção, não permitindo que esta sufoque aquela”. Contrariar essa regra fundamental, segundo Percival, pode ser muito perigoso, até mesmo fatal.

“Nós somos, rigorosamente, contadores de histórias. Se algo der profundamente errado, a história não será contada. O risco é, portanto, um marco divisório. Para contar a nossa história, temos que enfrentá-lo e vencê-lo. Nada de super-homem ou mulher-maravilha. Bons jornalistas, apenas, com um pouco de audácia e bastante determinação”.

* Do livro-reportagem “Nó na Garganta”.

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