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Número um

Nevou.

E Paris se fez mais romântica, a enfeitar-se de branco, telhados e ruas, logo na primeira manhã daquele ano.

Estávamos a escolher os próximos roteiros de viagem na Gare de Saint Lazare e vimos quando o senhor chegou a cantar, como se estivesse nada mais houvesse no mundo. Ele, a canção e as lembranças. Deu um não-sei-o-quê de saudade ali na hora que, mesmo agora, estou a me perguntar: se era coisa minha, do cantante ou da dolência natural da música romântica francesa?

Estou sem resposta ainda hoje.

II.

Ao seu lado, seguia um guri falante. Dezesseis ou dezessete anos, se tanto. Devia estar a contar os feitos da noite de São Silvestre, como por lá é conhecido o 31 de dezembro. O homem não lhe ouvia.

Tinha um chapéu enterrado na cabeça e o sobretudo que atravessara gerações. Poderia ser pai, avô, tio ou parente do garoto, mas não lhe dava atenção. Apenas andava ao seu lado, a balbuciar versos inteligíveis. O olhar vadio perambulava pelos trilhos dos trens que interligam a França a outros cantos da Europa.

A um dado momento, o rapazola se tocou da indiferença. Encheu-se de brios e pulou na frente do senhor. Queria aprovação para essa ou aquela proeza. Reforçava com gestos e sorrisos.

O expediente de pouco adiantou.

Ele parou de cantarolar. Mas, não de sonhar.

— Proeza. Que proeza, menino. Proeza será o dia em que você aqui deixar uma mulher chorando de amor e partir em um desses trens, também com o coração apertado, para enfrentar novos desafios. Aí, sim, poderá dizer que a vida valeu para alguma coisa. Aí, sim, vai se sentir um homem de verdade.

Voltou a cantar e a olhar os trilhos.

III.

Desconfio que o homem falava por experiência própria. Mas, também poderia estar lembrando de algum filme como sugeria a tal cena. Sei apenas que o cenário era propício para encontros e despedidas, os dois lados da mesma viagem. Ambos inesquecíveis.

Percebi uma certa perplexidade na expressão do garoto, tipo: não foi isso que eu perguntei. Porém, no ato, concordei com o senhor. E, sei lá porque motivo, me vi na platéia do Olympia em 1993. O cantor Nélson Gonçalves fazia um show que reverenciava 50 anos de boemia – Nélson morreu cinco anos depois, em abril de 1998, aos 79 anos.

IV.

A casa de espetáculo estava lotada e Nélson a enfileirar um sucesso atrás do outro – “A Minha Renúncia”, “Nem as Paredes Confesso”, “Negue”, “Fica Comigo Esta Noite” e a indefectível “Boemia”, entre outras. Lá pelas tantas, os acordes introduziram um samba-canção de Benedito Lacerda, chamado “Número Um”. Originalmente gravados por Orlando Silva, os versos contam a história de um homem que vê a mulher amada ir embora em busca de tantas e tamanhas "proezas", se é que me entendem?

Termina assim:

“Tudo porém foi inútil.
Eras no fundo uma fútil.
E foste de mão em mão.

Satisfaz tua vaidade.
Muda de dono à vontade.
Isto em mulher é comum.

Não guardo frios rancores.
Porque entre os teus mil amores.
E serei sempre o número um.”

Nélson não segurou as lágrimas.

V.

A platéia percebeu e se emocionou. Aplaudiu com mais intensidade. Quando as palmas e assovios diminuíram, o cantor tentou agradecer. No entanto, lá do fundo do salão, veio a voz de um gaiato:

— Chorando, hein, Nélsão…

E o cantor não se perdeu. Apesar da gaguejada, habitual quando Nélson falava, deu uma lição de vida para todos nós.

— Se você ama-masse como eu ama-mei, te-tenho certe-za que tam-bém cho-cho-choraria…

Mais e mais aplausos. Não havia neve, óbvio. Mas sobrou romantismo.

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