"Às vezes eu acho que a vida tá passando por mim. O resto do tempo acho que tá me passando para trás." (Frank e Ernest)
01. Vamos ao que se pode nesta manhã de quinta-feira em que leio nos jornais que o desemprego sumiu… Ou melhor, quando vejo as manchetes dos diários saudarem a queda na taxa de desemprego de 19,7 para 19 por cento — e a informação vem com a rubrica de a maior queda do ano. Uma beleza…
02. Na mesma manhã, assisto também ao desembarque do presidente Fernando Henrique Cardoso na Itália, com bem cortado sobretudo e a habitual simpatia que, invariavelmente, exibe quando está no Exterior. Em mais essa boca-livre internacional vai tratar de assuntos que, em tese, interessam ao Planeta e mais especialmente às nações em vias de desenvolvimento…
03. Pois é, foi por aí que lembrei da história que me contou o Geraldo Peixoto, vice-presidente da Associação Franco Basaglia e proprietário da Nado Livre. Tomo a liberdade de vender o peixe como comprei, tentando ser o mais fiel possível às palavras do amigo.
04. Lá pelos idos de 60, andava todo faceiro o Peixoto pela rua 7 de Abril, no Centro de São Paulo, e notou que um certo rapaz, todo engravatado, não se acanhou em dar um chute num desavisado cachorro que ousou cortar seu caminho. De imediato, um senhor, que também viu a cena, protestou verbalmente pela agressão ao pobre bicho. À observação mais do que oportuna, o impulsivo moço retrucou com um vôo rasante no pescoço do pobre defensor das minorias irracionais. Socos, pontapés, a turma do deixa-disso. Fez-se o tumulto e uma multidão parou para ver o espetáculo…
05. Como sempre acontece nesses casos, surgiram três alas: os que estavam a favor de que ali não era calçada para cachorro, os que consideravam o brigão mais animal que os próprios e a imensa maioria de curiosos que queria mesmo ver o circo pegar fogo. Argumentos e contra-argumentos logo se transformavam em discussões que geravam conflitos — e a coisa não tinha fim…
06. Aos mais jovens convém lembrar que na rua 7 de Abril situava-se a sede dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, que reunia alguns dos melhores repórteres da época. E foi exatamente um deles, Carlos Spera (que formou uma trinca famosa na TV Tupi ao lado de Tico-Tico e Maurício Loureiro Gama), que ao se dirigir à Redação percebeu a confusão e foi ver o que estava acontecendo… Como se dizia à época, a coisa tinha cheiro de notícia.
07. Os litigantes logo reconheceram o jornalista e o transformaram em mediador da disputa. As observações logo ganhavam contornos de discursos acalorados, alguns inclusive com embasamento filosóficos-pugilísticos. Outros sugeriam que o repórter tratasse do assunto nas páginas do Diário de São Paulo, o principal matutino da época. Confiavam na sua pena…
08. A certa altura, resolveram finalmente deixar o mestre dar seu parecer. Eis que a turba se pôs em silêncio. E então, doutor, qual seu veredicto?, disse um senhor de chapéu, em tom cerimonioso. Spera foi de uma precisão cirúrgica. Falta-me o x da questão — ponderou. Como assim? — espantaram-se todos. O cachorro? Onde está o cachorro? Ele é o que realmente interessa. Todo resto não passa de um grande equívoco.
09. É isso, então, caro leitor. Assim como a dança dos índices e das pesquisas, as nababescas viagens presidenciais e o quiprocó da 7 de Abril, vamos cuidar para que também nossas vidas não se transformem, por falta de um objetivo claro, num irreparável equívoco. Equívocos que podem tumultuar nossos sonhos. Tô lembrando por lembrar. Ninguém vive por nós.