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O Divino Ferreira

Autor: Renan Cacioli

Ademir da Guia
por João Cabral de Melo Neto

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

No sobrenome ele já nasceu craque. Ou com diria o grande Armando Nogueira, “nome, sobrenome e futebol de craque”. Um sobrenome que o fez, em 1957, pegar o trem na Central do Brasil, no Rio de Janeiro e, em seguida, o ônibus rumo a General Severiano – local onde ele provaria a todos que o Da Guia, na verdade, também sabia jogar como Ferreira. “Nome e posição”, perguntava o técnico das categorias de base do Botafogo para aquele monte de garotos que sonhavam vestir a camisa alvinegra com a Estrela Solitária no peito. Na vez daquele franzino moleque de 15 anos, a resposta veio convicta: “Ferreira, meio-campo”. E assim foram para o gramado iniciar os testes.

Naquela tarde, Ferreira driblou, passou, chutou. O mesmo que sempre acontecia no campinho de terra batida de Bangu, subúrbio carioca onde nasceu em 3 de abril de 1942. Ao final do jogo, o treinador olhou bem para aquele menino tímido e perguntou: “peraí, você não é o filho do Domingos da Guia? Pô, então, vem treinar aqui no sábado, vai ter um jogo, e tal”. Pronto, seu plano havia dado errado mais uma vez. E o Ferreira percebia que jamais conseguiria passar em uma peneira simplesmente como gostaria. Anônimo. Apenas mais um Ferreira entre tantos Silva. Pegou o ônibus de volta para casa.

Não se tratava de incômodo. Apenas um desafio. “Era uma coisa que passou pela minha cabeça de garoto. Ver se eu, sozinho, conseguiria fazer o Ferreira jogador”, relata o próprio. “Mas isso, de certa forma, me ajudou muito durante a carreira”. E a ajuda “divina” começou na mesma época do teste no Botafogo. Na verdade, dias antes. Junto com o amigo Durval, de tantas peladas naquele campinho perto de casa, decidiram tentar a sorte no Bangu. Naquela época, as equipes cariocas levavam muito a sério os campeonatos das categorias de base. Jogar bem no infantil ou no juvenil era passaporte certo para o time de cima. “No Jornal de Esportes tinha até uma página dedicada ao campeonato juvenil”, lembra Ademir.
Ademir e Durval treinaram e ficaram. Novamente como aconteceria em General Severiano dias depois, ao final do teste o treinador Moacir Bueno – que havia jogado ao lado de Domingos da Guia no próprio Bangu – encostou no garoto e soltou a pergunta:

– Você não é filho do Domingos?

– Sou.

– Pô, eu joguei com seu pai. Domingos é meu amigo. Então, vem na próxima semana, traz uns documentos, e tal…

Assim começava a carreira de Ademir Ferreira da Guia, filho de um dos melhores zagueiros centrais que o Brasil viu jogar. Que por méritos ou não, teve as portas abertas pelo pai, como veremos a seguir.

A ligação com Domingos

Ademir sempre foi uma pessoa calada, tímida, características que conserva até hoje nos depoimentos a respeito da vida pessoal e profissional. Quem ilustra um pouco do perfil dele é Oberdan Catani, goleiro que jogou no Palmeiras durante 14 anos – de 1941 a 1955 –, e que compara o jeito de Da Guia ao de outro sossegado com passagem histórica pelo clube: Waldemar Fiúme. “Se botar ele e o Ademir em uma viagem daqui ao Rio, eles chegam lá sem saber que estavam juntos”.

Assim mesmo, de poucas palavras, o Divino morava com os pais e três irmãos. O pai Domingos, na verdade, ele nunca viu jogar. Quando parou de encantar a torcida com sua classe refinada ao sair jogando com a bola dominada, em 1949, no mesmo Bangu onde começara, Ademir tinha apenas sete anos de idade.
“Eu vivi com meus pais até os 19 anos, quando vim para o Palmeiras. Era um garoto muito quieto, não dava trabalho. Ainda mais Bangu, que era um lugar tranqüilo, tinha lá um cinema, um clube, um campo. Eu não era de sair, não ia para bailes, não fazia nada”, recorda.

Do pai, ele não chega a falar com carinho ou ternura. Mas todas as vezes, com admiração e respeito. Estavam sempre juntos, o filho acompanhando as andanças do pai quando este virou técnico de futebol e viajou para Tupã, Bauru, São Paulo. E foi justamente durante essa vida cigana que Domingos passou a utilizar a influência que conquistara, como atleta, para posicionar o filho nos grandes clubes do Estado de São Paulo. Por incrível que pareça, o primeiro desafio de Ademir na capital foi no Corinthians. Em 1955, ele chegou de mãos dadas com Domingos no Parque São Jorge. Tinha 13 anos. Treinou com os garotos de 15. Ao final do dia, o técnico Rato, que também já tinha atuado ao lado de Domingos, chamou seu ex-companheiro de lado e sentenciou: “Olha, Domingos, o teu garoto treinou bem mas não dá para pegar ele. O campeonato é com moleque de 15 anos, já está começando, e ele tem só 13”, falou. Mal sabia que aquele garoto, anos mais tarde, seria um dos carrascos palmeirenses na decisão do Campeonato Brasileiro de 1974 diante do rival alvinegro.

E esta não foi a única vez em que o “negro-aço” esteve perto de jogar em uma grande equipe do Estado fora o Palmeiras, onde ele consagraria-se no futebol. Já em 1958 – quando disputava seu segundo ano como infantil no Bangu –, após a Copa do Mundo, seu pai queria levá-lo novamente ao Parque São Jorge. “No meio do caminho, ele decidiu que não iríamos mais ao Corinthians. Falou que nosso destino seria o Santos. Ficamos uma semana lá. Só que a equipe principal estava na Europa. Isso era pouco antes do Carnaval”.

Passada a semana, Domingos foi falar com o diretor, que disse:

– Domingos, o menino interessa, ele pode ficar com a gente aqui em Santos, eu posso oferecer para ele até…

– Não, é o seguinte. Eu quero 13 mil cruzeiros!

– Olha, Domingos, eu só posso oferecer nove. Vamos fazer o seguinte: eu não tenho autonomia para dar esse valor. Mas vamos esperar o Santos voltar aí eu vejo, se eles gostarem eu pago 13 mil sem problema nenhum.
Ademir conta que, como eles ainda precisariam aguardar a chegada do elenco do Peixe, convenceu o pai a voltar para Bangu e retornar quando houvesse uma resposta. “Aí voltamos para o Rio, e o que aconteceu? O Bangu convidou meu pai para ser técnico do infantil. Então eu continuei lá. Não ganhei nove, nem 13, nem fui para o Santos! Se eu ficasse lá, jogaria naquele time com Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe”.

Por ironia do destino, a última vez na qual Domingos interferiu na carreira de seu talentoso rebento foi justamente a mais decisiva e que, mais tarde, definiria o jovem de 19 anos como “ O Divino”. Mais uma sombra carregada do pai, que quando deslumbrou os uruguaios do Nacional, time uruguaio que defendeu em 1933, ganhou o apelido de “El Divino Mestre”. Próximo a agosto de 1961, Domingos chegou em casa entusiasmado e falou que o filho recebera uma proposta do Palmeiras:

– Nós vamos para São Paulo, arruma suas coisas, tem um contrato já aqui.

O fato é que o garoto retraído e tranqüilo demais para imaginar que aquela história de jogar bola poderia virar um caso sério, não queria sair da terra natal e vir para uma metrópole tão agitada. Ele relata que foi feita uma reunião familiar para decidir se ele iria mesmo para São Paulo. A decisão foi unânime.

– Ué, tá bom, se você não quer ir eu vou lá para São Paulo explicar a história para o diretor e a gente desfaz o negócio – conformou-se Domingos.

Passados alguns dias, o pai apareceu em casa animadíssimo:

– Ademir, meus parabéns, você tá contratado, já tá tudo certo! Você vai embora para São Paulo amanhã! Olha aqui, já tô com um monte de dinheiro!

Segundo palavras do próprio Ademir da Guia, a ida para o Parque Antártica foi, na verdade, um grande susto. “Quando eu fui treinar no Bangu, não tinha essa pretensão de ser jogador”.

Filho de peixe…

Mas se o meio-campista não vislumbrava uma carreira promissora como atleta profissional, as vitórias sempre estiveram à sua procura. E isso desde os tempos de nadador do Bangu, onde conquistou o Campeonato Carioca ainda na infância. “Natação, na realidade, foi meu esporte favorito. Futebol é uma conseqüência, não é verdade?!”, brinca Ademir.

A fase de “peixe” do rapaz terminou quando ele definitivamente ingressou no futebol, no time infantil do Bangu, em 1957. Disputou o campeonato da categoria em 57 e 58, tirando terceiro e segundo lugares, respectivamente. Em seguida, chamou a atenção dos torcedores quando levantou a taça do torneio carioca juvenil, no ano seguinte, feito até então quase restrito a Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo. A conquista rendeu-lhe muito mais do que uma medalha. “O Bangu, como há muito tempo não tinha aquele título e em seguida disputaria o Torneio Internacional de Nova Iorque, deu um prêmio para quatro jogadores do juvenil: viajamos junto com a equipe profissional”.

Doze clubes participaram do torneio em 1960, entre eles, o Bangu, o Estrela Vermelha, da Iugoslávia, a Sampdoria, da Itália, o Sporting, de Portugal, e o Bayern de Munique, da Alemanha Ocidental. Os cariocas levaram o título, e Ademir, o prêmio de melhor jogador da competição. “Me deram um envelope e disseram que tinha bastante dólar lá dentro. Aí quando cheguei no hotel, pensei: ‘deve ter pelo menos uns dois mil dólares aqui’. Abri aquele envelope, contei, e tinha 21 dólares! Falei: ‘pô, mas eu não fui o melhor jogador do torneio?’, diverte-se o Divino.

Quando retornou ao Brasil, o nome de Ademir da Guia já despertara a atenção de vários boleiros da época. Mas um nome foi fundamental na vinda do jogador para São Paulo: Armando Renganeschi. Seria o início das Academias do Parque…

A consagração no alviverde

O argentino Armando Renganeschi foi um dos bons zagueiros sul-americanos que passaram pelo Brasil. Depois virou técnico. Certa vez, o Bangu foi até Campinas fazer amistosos contra Ponte Preta e Guarani. O Bugre era dirigido pelo argentino, que ao maravilhar-se com o futebol de Ademir, pediu à diretoria do Guarani a sua contratação. Sem dinheiro no caixa, o time campineiro não pôde aceitar o apelo de “Renga”.

Mas em 1961, já como treinador do Palmeiras, novamente ele insistiu na negociação daquele meio-campista do Bangu. E por 3 mil e 700 cruzeiros, a diretoria do Parque Antártica trouxe o sonho de consumo do técnico argentino. Ademir relata como foi essa recepção na equipe palestrina.

“Quando eu cheguei, o importante foi que pude aprender bastante coisa. Eu vinha do futebol carioca, que era mais tocado, cadenciado, e aqui era uma correria só, você ia para o interior jogar contra São Bento, XV de Piracicaba, aqueles campinhos com a torcida em cima, parecia uma guerra”.

Os problemas de adaptação criaram algumas dificuldades para Ademir, que além de precisar habituar-se a uma nova cidade totalmente diferente daquele pacato subúrbio onde nasceu, ainda sofria com uma cobrança da torcida palmeirense pela qual ele não esperava. “Esse início foi complicado, até a torcida entender que eu poderia jogar bem ali no meio, passaram-se anos”.

Um exagero. Na verdade, desde a estréia, em julho de 1962, num 5 a 1 diante do Taubaté, até ser considerado o melhor jogador do Campeonato Paulista de 1963, foram apenas alguns meses. Neste ano, aliás, ele conquistou tanto o torneio de aspirantes quanto o principal. Sua grande dificuldade, no princípio, tinha o nome de Chinezinho, o ídolo do time quando Ademir desembarcou no Parque. “Eu precisei chegar, treinar e conseguir uma vaga na equipe. E só consegui essa vaga porque o Chinês foi embora para a Itália. Ele era daqueles que jogava sempre, não se machucava nunca, não dava chance”.

A partir da titularidade do jovem de 21 anos, o que se viu durante 16 anos de Palmeiras em 866 jogos – recorde do clube até hoje – e 153 gols, quem teve o privilégio não esquece jamais. ”Eu sempre fui fã do futebol arte, que tenha o sentido de competição mas que também seja jogado com elegância, inteligência, habilidade e talento. E o Ademir era o resumo disso tudo. O Ademir da Guia tinha o estilo dos jogadores dos anos 20, 30, 40, parecia que tinha um ímã, a bola passava obrigatoriamente por ele”, lembra o colunista do Diário de S. Paulo, Alberto Helena Jr., que escreveu o livro “Palmeiras, A Eterna Academia”.
“Eu o qualificaria entre os dez melhores do mundo que vi atuar. Ele parecia ser lento, mas era rapidíssimo, com passadas largas. Jogador que tinha um domínio de bola extraordinário. Para transportar para os dias de hoje ele lembra muito o que é o Zidane. Aliás eu acho que o Ademir foi mais jogador do que o Zidane no auge. Era monumental”, qualifica o narrador da Rádio Jovem Pan, Nilson César.
Com a conquista estadual de 1963, Ademir iniciou uma trajetória vencedora com a camisa alviverde. Foi campeão do Rio-São Paulo, em 65, do Paulista (66, 72, 74 e 76), do Brasileiro (72 e 73), do Roberto Gomes Pedrosa, o Robertão, correspondente ao Campeonato Brasileiro da época (67 e 69), da Taça Brasil (67), dos torneios Laudo Natel, Mar del Plata e Ramón de Carranza (ambos em 72), além de ser eleito Bola de Prata da Revista Placar em 1972. Os estaduais de 63 e 66, aliás, marcaram época: foram os dois únicos anos em que a hegemonia do Santos de Pelé foi quebrada durante a década de 60.

Em 1964, chegou ao Palestra Itália aquele que seria o seu grande parceiro dentro e fora de campo, e que formaria com o Divino uma das melhores duplas de meio-campo de todos os tempos do futebol brasileiro: Dudu.

A saudosa Academia

“Jogamos juntos durante 12 anos. E a gente se completava porque éramos totalmente diferentes. Em tudo. O que tínhamos de igual era aquela dedicação à profissão, o senso de responsabilidade. Mas em temperamento, em maneira de ser, em modo de pensar, éramos completamente diferentes. Mas ficávamos juntos na concentração. Depois ele ainda foi meu técnico (na campanha do título paulista de 1976)”. Assim Ademir fala de Dudu, o eterno companheiro no Parque Antártica.
Ambos passaram pelas duas versões das Academias ao lado de craques como Djalma Santos, Leão, Edu, Leivinha, Julinho, César, Tupãzinho, entre outros. Dudu conta que, quando chegou da Ferroviária para o Palmeiras, aos 24 anos de idade, precisou adaptar seu estilo de jogo em virtude das características do “negro-aço”. “Eu era um volante que jogava para frente, não era marcador, e precisei atuar mais atrás porque quem apoiava o sistema ofensivo era o Ademir. Ele tinha uma capacidade técnica muito grande, e eu jamais iria competir com ele nessa situação”, revela.

Se a parceria deu certo? “A gente se conhecia tanto que eu, sem olhar a bola, já sabia onde ele se encontrava. Quando ela chegava no meu pé, eu dava um toque para o lado e sabia que ele estava ali porque criamos um entrosamento muito grande. Sem falar que se o jogo apertava, eu dava um bico na direção dele e ele dominava com muita facilidade”, lembra entre risadas. Dudu fala que a amizade aumentou ainda mais a partir da chegada do técnico Oswaldo Brandão ao Palestra, em 1971, quando ele o colocou no mesmo quarto do Divino durante as concentrações.

Quem também criou um laço especial de convivência com Ademir foi o atacante Leivinha, que freqüentemente convidava-o para jantar em restaurantes na companhia do zagueiro Luís Pereira. Leiva fala sobre um fato curioso que ocorria nos treinamentos da equipe. “Antes do aquecimento, a gente tinha o costume de fazer aquela rodinha de ‘bobinho’. E a gente tentava de todas as formas colocar o Ademir na roda: jogando a bola mais forte em cima dele, cheia de efeito. Olha, é impressionante por que eu não me lembro, em cinco anos de Palmeiras, de ter visto o Ademir no meio da roda”.

O hoje comentarista de futebol na Sportv narra o quão impressionante era o controle do jogo que Ademir passava aos companheiros. “Ele tinha tanta consciência do que representava para o Palmeiras, que era um jogador muito regular. Você não podia esperar dele uma coisa como ‘olha, hoje teve um lance incrível do Ademir’. Não. Mas aquela matada tornou-se uma coisa especial nele: quando a bola vinha alta, ele erguia a perna com aquela calma e, lá no alto, a bola já colava no pé dele”.

A partir de 1976 e 77, a Academia foi se esfacelando até culminar na despedida de sua maior estrela. Durante o Campeonato Paulista de 77, Ademir começou a sentir problemas de respiração que o impediam de atuar durante os 90 minutos. Operou o nariz duas vezes mas não conseguiu recuperar a confiança. No dia 18 de setembro de 1977, ele saiu de um jogo disputado contra o Corinthians – que o alviverde perdeu por 2 a 0 – e não voltou mais.

Seu jogo oficial de despedida só aconteceu seis anos depois, em 1984, entre um selecionado Paulista comandado por Rivelino e um combinado de jogadores do Palmeiras. A partida, realizada no Canindé, terminou com a derrota de 2 a 1 para o Divino. Mas a história de Ademir da Guia nos jardins suspensos do Parque Antártica foi tão marcante que, em 1986, ele recebeu um busto em sua homenagem ao lado de apenas outras duas figuras com passagens consagradoras pelo Palestra: Waldemar Fiúme e Junqueira. Os três únicos com tal honraria.

A trajetória pela Seleção

“O problema do Zagallo era com o meu pai. Quando tinha uma convocação, os repórteres iam questionar, e ele metia o pau, dizia que o Zagallo não entendia nada, e isso, e aquilo. Então o problema não era comigo porque eu nunca falei nada do Zagallo nem vou falar”.

A frase de Ademir da Guia pode ser apenas uma das explicações pelo fato dele não ter disputado aquela fatídica Copa de 1974. Ou ao menos, ter jogado a partida inteira contra a Polônia, na decisão do terceiro lugar, quando pela primeira vez na história ele atuou em um confronto de Mundiais. Mas só no primeiro tempo. Em seguida, Zagallo sacou-o e colocou o atacante Mirandinha. Algo que a crônica esportiva da época achou inconcebível e não entende até hoje. “O primeiro tempo em que ele jogou foi o único momento da Copa que a Seleção teve organização em campo, inteligência, tocou a bola. Terminou 0 a 0, mas o Ademir dominou o jogo”, lembra Alberto Helena Jr.

Aliás, difícil é arrancar do Divino o que realmente acontecia na relação entre ele e o Velho Lobo. “Não é que eu fui injustiçado. Naquela época, nós tínhamos dois meios-de-campo, Gérson e Rivelino, que eram os preferidos pelos técnicos. E ainda tinha eu, o Dirceu Lopes, poderia ter ido qualquer um”, conta timidamente.
O repórter Nelson Cilo, do Diário do Grande ABC, relata que certa vez ficou encarregado de fazer uma entrevista especial com Ademir. Em determinado momento do bate-papo, ele tentou de todas as maneiras extrair algo mais polêmico do Divino a respeito do episódio de 74. “Foi a única vez que eu vi o Ademir perder levemente a paciência. Eu insisti tanto que ele falou que não adiantava eu perguntar aquilo ali pois ele não falaria mais nada”.

Mas Ademir deixa escapar algumas pistas que ajudam a entender melhor o que de fato ocorreu. “A minha convocação, por exemplo, o Zagallo não queria me levar. Eu não tenho certeza, mas parece que o Havelange (João, que acabara de ser eleito presidente da Fifa) pressionou. O Zagallo tinha uma preferência pelo Rivelino. Ainda que, se quisesse, poderia ter colocado nós dois para jogarmos juntos, como ele fez naquele último jogo. Mas era opção do técnico, né? Então, na realidade, na Seleção eu não tive muita oportunidade”, lamenta.

Zagallo disse, inclusive, que Ademir teria saído da partida contra os poloneses porque estava cansado. Cogitou-se, até, que o meio-campista admitira o cansaço nas entrevistas pós-jogo apenas para não causar alguma espécie de polêmica, coisa da qual ele sempre manteve distância. “Poderia ter falado que ele me sacaneou, me tirou, que eu estava jogando bem, que ele tinha algo contra mim. Mas não falei nada. Agora, na realidade, eu não pedi para sair, nem me machuquei”, revela o Divino. Alberto Helena Jr., no entanto, tem outra versão para o dia daquela disputa de terceiro lugar, na qual o Brasil perdeu por 1 a 0 da Polônia.

“Isso quem me contou foi o Alfredo Mostarda e o Luís Pereira. No dia do jogo, na hora do almoço – o Ademir nunca tinha sido relacionado nem para o banco –, então ele comia à vontade, ele e o Edu, do Santos, que eram os dois marginalizados da Seleção. Aí o Zagallo ficou só observando. Quando o Ademir comia sua segunda pêra, na sobremesa, o Zagallo chegou e falou ‘ô, manera que você vai jogar hoje, hein?!’. Disseram que a pêra até entalou, ele ficou vermelho na hora. O Alfredo Mostarda falou que teve vontade de levantar e dar um murro na cara dele”.

O comentarista da Rádio Jovem Pan, Cláudio Carsughi, acha que o problema estava, também, na velha rivalidade entre Rio e São Paulo. “Acredito que havia uma disputa entre o Gérson e o Ademir, com desfecho claramente favorável ao Gérson. Primeiro porque a CBD (atual CBF), no caso, era no Rio, e toda a imprensa carioca fazia lobby favorável ao Gérson. E segundo porque o Ademir nunca foi um cara de se impor. E polêmica com um só você não consegue”.
Injustiças à parte, a primeira aparição de Ademir com a camisa canarinho veio em 1965, através de amistosos contra Bélgica (5 a 1), Alemanha (2 a 1), Argentina (0 a 0), e Argélia (foi substituído pelo técnico Vicente Feola aos 20 minutos do primeiro tempo, quando o placar anotava 3 a 0 para o Brasil). O momento máximo, no entanto, foi no dia 7 de setembro daquele mesmo ano, quando a CBD (atual CBF) convidou o Palmeiras para representar o país no amistoso diante do Uruguai, marcando as festividades cívicas e também a inauguração do estádio do Mineirão. A primeira versão da Academia, com a camisa amarela, venceu por 3 a 0 (gols de Rinaldo, Tupãzinho e Germano). A única equipe que repetiu o feito de representar o país foi o Corinthians, em novembro do mesmo ano, contra o Arsenal, em Londres, com uma derrota por 2 a 0.

Um discípulo do carrossel

O jornalista Alberto Helena Jr. conta dois episódios curiosos que ilustram características do futebol jogado por Ademir da Guia e sua fama de lento. Certa vez, como chefe de reportagem do Jornal da Tarde, lá pelos idos de 1972, ele recebeu de seu repórter – José Mário Mendonça, hoje cronista político da Rádio Eldorado – a seguinte sugestão de pauta: um ex-jogador holandês que estava fazendo um estágio no Guarani como preparador físico.

Alberto conta que, naquela época, ouvia-se falar muito sobre o futebol holandês através do Feyenoord e do Ajax, que eram grandes fenômenos das copas européias, mas que, devido à escassez de informações, ninguém sabia ao certo como era jogado esse futebol que dizia-se tão moderno, eficiente e revolucionário. Ele, então, pediu que o José Mário fosse até Campinas e perguntasse para o tal estagiário se ele conseguiria identificar em algum jogador brasileiro, a concepção e estilo de jogo semelhantes ao do futebol jogado na Holanda.

Quando retornou, o repórter transmitiu a seguinte resposta do dito cujo: “ Olha, eu não sei por que a surpresa de vocês, brasileiros, de como é o futebol holandês. Porque o nosso futebol é como joga o Ademir da Guia, está em todo lugar ao mesmo tempo, não erra passes, é um jogador múltiplo”.

Um outro caso contado pelo jornalista diz respeito à famosa lentidão com a qual Ademir era associado no início da carreira. Ele enviou um repórter do JT para ir até o Palmeiras fazer um teste: uma corrida entre Ademir e Edu Bala – considerado o “filho-do-vento” daquele tempo, segundo o próprio Albert –, numa distância de 50 metros, ambos calçando chuteiras. “O Edu foi mais rápido por milésimos. O Ademir tinha aquelas pernas longas, e que compensavam a aparente lerdeza dele comendo espaços. Era muito difícil o cara alcança-lo quando ele saía com a bola dominada do meio do campo”, afirma o jornalista.

Idéias novas

Ademir da Guia, após abandonar a carreira de jogador e trabalhar nas categorias de base do Palmeiras, chegou até o campo político filiando-se ao PC do B. Muito menos por agitação política e mais pela amizade que tem com o ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, palmeirense assumido, Da Guia continua sereno na Câmara de Vereadores de São Paulo, local onde ele concedeu a maior parte desta entrevista.

Vindo de uma época em que apenas jogadores que disputavam Copas do Mundo tinham alguma chance de negociar com clubes estrangeiros – e mesmo assim, a um mercado restrito – o próprio Ademir nunca teve empresário, coisa difícil de se imaginar no futebol globalizado dos novos tempos. Mas ele é a favor da profissionalização do esporte através das parcerias entre os clubes e as empresas, e não vê problemas no caso MSI Corinthians, onde cogita-se que uma suposta lavagem de dinheiro seria responsável pelas compras milionárias dos jogadores que chegaram ao Parque São Jorge neste ano.

“Eu também não sei te falar de onde vem o dinheiro. Mas de algum lugar tem que vir, né? Para fazer esse tipo de negócio, contratar jogadores que são craques no Boca Juniors, técnicos, precisa ter uma condição. Nós tivemos aqui, por exemplo, a Parmalat, que ajudou muito o Palmeiras. Eu acho a empresa muito importante para o clube e os jogadores”.

Fã de Robinho, Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo (apesar de achar realmente que o Fenômeno está um pouco acima do peso), três jogadores que ele enumera como foras-de-série atualmente, ele diz com bom-humor que voltaria a trabalhar no futebol, sem problema algum. “Amanhã, se o Real Madrid me contratar, eu vou embora. Se eu arrumar um bom empresário, vou fazer um contrato, e para jogar ainda! Aliás, não preciso nem jogar, pego o dinheiro e fico lá no banco”.

Uma de suas últimas empreitadas no campo esportivo foi quando indicou o astro do futsal, Falcão, que recentemente tentou a sorte nos gramados pelo São Paulo, para treinar no Palmeiras. “Eu assisti o Falcão na praia, e achei que ele podia ter uma chance no futebol. Mas o contrato dele não permitia que ele ficasse mais do que uma semana, e o Palmeiras queria a permanência dele durante um mês. Então ele preferiu não arriscar”, conta. Antes mesmo da nova experiência de Falcão dar errado no Tricolor, Ademir já profetizava: “Agora, o que eu acho muito importante: o Falcão não vai conseguir ser, no campo, o grande jogador que foi no salão. Então, para ele, talvez não interesse ser mais um se ele puder ser o melhor”.

Melhor, assim como Ademir foi no seu tempo. Simplesmente, um divino Ferreira. Como ele sempre quis ser.

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