Sign up with your email address to be the first to know about new products, VIP offers, blog features & more.

O flautista

Não tenho o que reclamar
da chuva intensa que castiga
a manhã desta terça-feira,
mesmo em pleno verão.

Segundo alguns amigos, esses torós
estariam à minha espera em Santiago de
Compostela, quando ali aportei no Natal
para uma breve estadia.

Recomendaram:

"Nesta época, chove muito naquela
região. Leve capa e guarda-chuva."

Não levei – e não choveu.

II.

Fez um frio suportável, diria.

Bastou o bom e velho sobretudo
para que tirasse de letra
as baixas temperaturas locais.

Aliás, houve até tardes ensolaradas
em que fui obrigado a levar
o casaco e a blusa de lã nas mãos,
enquanto caminhava sem rumo certo.

Em um desses périplos, alcançamos
o Parque das Alamedas, uma simpática
área verde – não tão verde assim
no inverno –, com jardins, bancos,
coreto, estátuas e patos
a nadar num pequeno lago.

Ou seja, tudo o que possuem
os tradicionais parques europeus
e suas cópias mundo afora.

III.

Estávamos exaustos da caminhada
e descobrimos logo ali, do outro
lado da rua, uma cafeteria
com mesas e cadeiras espalhadas
pela Plaza de Figueroa.

Chance única de nos largar
ao sol, depositar os casacos
nos cabideiros e beber algo.

Um ‘expresso’ que fosse
nos daria a oportunidade de
lá ficar por horas a fio,
se assim o desejássemos…

Foi o que fiz.

Pedi um café e uma água.
E me dispus à contemplação.
Uma das coisas que mais gosto
quando viajo. Deliciar-me sem
nada a fazer, sem tempo,
sem compromisso. Apenas e tão
somente a olhar o movimento
das ruas, das pessoas,
dos arredores.

Viscejar, eis o termo.

IV.

Pois estava largadaço no meu
canto, pensando nas agruras dos
seis peregrinos que chegaram naquela
manhã à Catedral de São Thiago –
fazer o tal caminho é uma pedreira
em tempo normal, imaginem
no inverno! – quando ouvi
a música ao longe.

Gradativamente, o som se fez mais
e mais próximo. Era um tema erudito
que não consegui identificar. Mas, logo
percebi que seria desnecessária
tal informação. Apareceu um desses
músicos de rua que por si
só valia o espetáculo.

Que figuraça!

V.

Pensem num flautista de priscas
eras. Pois, era tal e qual.

Esquelético, cabelo cortado à moda
Pigmalião – talvez um exemplo
mais atual, mas não tão atual, seria
lembrar o estilo Chitãozinho
e Xororó no início da carreira –
um baita narigão a se destacar
do rosto pálido e triangular.

Vestia-se inteiramente de preto
com roupas justas e botas de cowboy,
também pretas. Trazia um chapéu
— preto, óbvio – enterrado na cabeça
que só tirava para fazer a coleta de
moedas entre os freqüentadores do Café.

Uma figuraça, como disse.

VI.

Enquanto tocava, ele nos divertia
com passos desajeitados de
uma dança esquisita, mas, ritmada
que, imagino, o próprio
flautista deveria ter inventado.

Assim o homem saracoteava entre
as mesas, chamando a atenção de todos.

Depois de alguns minutos,
o inefável passar o chapéu.

VII.

Na Europa, esses músicos de rua
são comuns. Ali mesmo, em Santiago,
havia um guitarrista de blues ao lado
da Catedral. Em Madrid, vi um violinista
com um irrepreensível repertório
entre o clássico e o popular.

Creio que foi em Pamplona.
Encontrei um senhor a tirar sons
celestiais de copos enfileirados,
afinados unicamente pelo volume
de água que continham. Ele passava
a mão sobre a borda dos copos
delicadamente e surgiam os acordes.

Já havia visto coisa parecida
em algum circo, quando ainda
era criança – põe tempo nisso.

Mas, o flautista me pareceu único.
Pela performance, pela expressão
de duende, pelo encanto daquela
tarde de sol tão longe de casa.

VIII.

Ia solto em meus devaneios e,
de repente, o chapéu do flautista e
o próprio balançaram à minha frente,
numa clara alusão do que queriam.

Moedas, moedas, moedas…

Não me fiz de rogado.

Enfiei a mão no bolso da calça
e lhe dei todas as que tinha.

Registre-se que não eram muitas
(três) e, é provável, de pouco valor.

O homem fez uma expressão
de tédio e horror, disse umas palavras
em galego que nada entendi
e foi-se embora, tocar sua flauta
em outra freguesia.

IX.

O idioma galego é bem parecido com
nosso. Troca-se o J e o G pelo X,
mas tudo bem. Se a xente prestar
atenção até que entende alguma
coisa sem precisar ir ao coléxio.

Mas, do xeito que o homem
esbravexou, naquele dia,
Virxem Maria, vai saber
o que teria dito…

Tenho certeza, porém, que sobrou
pra mim, de mão-de-vaca pra baijo.
Só não sei se bronqueou apenas
comigo ou foi um pega xeral.

Na verdade, até hoxe, não aprendi
como se diz muquirana em galego. Mas,
seguro, foi algo assim que ele disse
e olhou feio para todos nós…