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O marqueteiro (íntegra)

José do Nascimento.

Eis o nome da fera que lhes apresento.

Nasceu nos confins da Vila Carioca, subdistrito do Ipiranga, quando São Paulo era pouco mais que uma aldeia.

Foi ator, radioator, produtor de TV nos tempos áureos da Record, empresário de shows, publicitário, jornalista, entre outras atividades até que enveredou para o marketing político quando, a bem da verdade, a expressão sequer frequentava o imaginário da rapaziada nos idos de 70.

Aliás, foi por essa época que eu o conheci na Redação da combativa Gazeta do Ipiranga, jornal de bairro com circulação semanal e tiragem entre 50 e 60 mil exemplares.

Ele assinava uma coluna com o pseudônimo de Zé Armando.

Uma espécie de Amaury Júnior daquelas quebradas tidas e havidas como históricas.

Divertia-se a provocar, com notas bem-humoradas, a fina flor da sociedade local, orgulhosa por morar (quer dizer, residir) no quadrante onde Dom Pedro, aquele da Marquesa, dera o grito – e que grito!

Por isso, nós, jovens repórteres, que com ele conviviam, achávamos seu codinome bem sugestivo.

Quando moleque, era chamado de Zequinha. No rádio, na TV e na publicidade, assumiu a pompa de Jota Nascimento, com direito a echarpe e cachimbo. Para nós, era simplesmente Nasci, o Mestre. Mas, a coluna assinava Zé Armando porque sempre estava “armando” algo para alguém.

Adorávamos seus truques e suas histórias.

Certa vez, o vereador Almir Guimarães andava, digamos, ausente do seu reduto eleitoral, o bairro do Ipiranga. Ele era amigo do pessoal da Redação, inclusive já detectávamos o desejo do vereador ampliar sua atuação como político para outras áreas da cidade.

Era uma proposta que tinha.

Ao zanzar por outras paragens, esquecia-se do Ipirangão velho de guerra que lhe garantira a eleição logo na primeira vez que concorreu a um cargo público.

O Nasci não concordava com esse ‘esquecimento’.

Por isso, mandou ver no jornal daquela semana:

“FORA ALMIR”

O vereador nem se preocupou em ler a íntegra da nota. Bastou-lhe o título. Entrou na redação desacorçoado. Louco para tirar satisfação com o autor daquelas brevíssimas linhas.

O Nasci não se abalou.

Diante da peroração do vereador que se dizia traído pelo grande amigo, o Mestre foi objetivo:

— Leia a nota toda, por favor.

Lá estava. Algo assim:

“São Paulo não vive um bom momento. Enfrenta uma fase difícil – e, se não mudar radicalmente, só terá derrotas pela frente. Por isso, proponho já que se troque o médio-volante Almir por um jogador de maior técnica e competência. Só o técnico Cilinho não vê que o Tricolor é um dos grandes clubes paulistanos e precisa de craques à altura de sua história e de suas glórias. Por isso, FORA ALMIR…”

Indiferente ao silêncio de todos na Redação, Nasci continuou a fumegar o cachimbo holandês que lhe demos de presente em uma das festas de Natal da empresa.

O vereador não teve o que argumentar.

Riu da piada – e, óbvio, entendeu o recado.

II.

A palavra de ordem no início dos anos 80 era redemocratização.

Nasci deixou o jornal e passou a ser homem de confiança do vereador Almir Guimarães, desde logo alçado a condição de coordenador da campanha do parlamentar do então MDB na eleição de 1982.

Tornaram-se amigos. Vez ou outra, os dois almoçavam num restaurante charmoso que tem ali, na rua Vergueiro- o Bacalhau do Porto. Mais do que honrar as origens dos pais (que eram de Trás dos Montes) ou degustar a deliciosa culinária portuguesa, Nasci percebeu que os muros no entorno do estabelecimento haviam todos se transformados em outdoor improvisado do restaurante.

Não eram pichações, nem grafites.

Ostentavam um visual caprichado, de letras legíveis a considerável distância. “Truta a dorê”, “Badeja na chapa”, “Bacalhau a Gomes de Sá” – enfim, essas e outras atrações do cardápio eram oferecidas a céu aberto aos passantes, fossem pedestres, fossem motoristas – e olhem que a Vergueiro é uma via hiper movimentada que faz a ligação entre São Paulo e o Grande ABC.

Acendeu uma luzinha na cabeça do nosso Professor Pardal.

Como quem nada quer, Nasci assuntou os garçons sobre o resultado daquela escandalosa e colorida parafernália rua afora.

Sensacional, foi a resposta que ouviu.

Ouviu mais. Que o Sr. Duílio, o dono do restaurante, havia contratado um tal de Humberto, pintor desempregado que lá um belo dia lhe trouxe a ideia daquela propaganda fora de qualquer padrão.

Por alguns trocados, o homem fez o primeiro; depois, outro e mais outro…

Todos gostaram.

Mais. Quando foram ver os arredores estavam tomados de anúncios.

O restaurante ficou mais conhecido. Os pratos se popularizaram.

O movimento aumentou.

O próprio Duílio, sem saber que arranjara um concorrente, garantiu que valeu o investimento.

— Ficou bem em conta, viu!

Não preciso dizer mas digo o resto da história.

Nasci bateu e virou os quatro cantos do Ipiranga (repito: área eleitoral do vereador), depois fez o mesmo em toda a cidade. Olhos atentos a paredes e muros das principais avenidas e lugares de boa visibilidade e movimento. Por conta e risco, acrescentou à planilha fachadas de prédios e estabelecimentos comerciais que poderiam ser utilizadas futuramente.

Fez mais.

Conversou com o tal Humberto e fechou um contrato básico para ano e tanto de trabalho.

(Falei que o Sr. Duílio arranjara um concorrente.)

Na sequência, conversou também com os proprietários dos espaços que pretendia usar. Acertou um aluguel simbólico para que deixassem estampar a propaganda política do vereador Almir Guimarães. Depois da eleição, o vereador se responsabilizaria em limpar e dar uma nova pintura ao local.

A bem da verdade, ninguém entendia direito o resultado final do que Nasci estava planejando. Até então não se usava tal recurso publicitário – pintar paredes – em campanhas eleitorais.

Mas como contestá-lo?

O vereador relutou, mas acabou topando – e bancando o projeto.

Deu-se muito bem!

A partir de março daquele ano – e progressivamente nos meses seguintes até a eleição – espalhou-se pela cidade, em muros, paredes e que tais, a propaganda do vereador e o indefectível slogan:

“VEREADOR ALMIR GUIMARÃES.
Sempre presente. “

Foi um dos mais votados vereadores de São Paulo, com 82 mil votos.

III.

Foi mesmo uma eleição histórica, a de 82.

Depois de tantos e tantos anos, o Estado de São Paulo voltava a escolher o governador pelo voto direto. Elegeria também senador, deputado federal, deputado estadual e vereador. Praticava-se então o chamado voto vinculado – em que o eleitor deveria optar por candidatos de um só partido ou de uma só coligação.

Por isso, dentro dos partidos, valia a praxe consagrada pelo grupo Tribalista. Ou seja, “eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também.”

Explico.

Concorrentes ao Senado, à Câmara Federal e à Assembléia Legislativa buscavam fechar aliança com vereadores de todos os rincões do Estado que trabalhavam os nomes dos supracitados em suas zonas eleitorais. Eram os edis que iam para o corpo a corpo no convencimento aos eleitores.

Claro que não fechavam tais parcerias pelos lindos olhos dos figurões.

Em troca do trabalho diuturno – que ia desde distribuição de ‘santinhos’ e brindes à promoção de encontros com entidades representativas de cada segmento social da região – os candidatos a vereador recebiam o que no jargão do meio chamávamos de “apoiamento”.

De um modo ou de outro, os carões arcavam com as despesas – inteiras ou parte delas – para a instalação de um comitê eleitoral, forneciam parte do material de campanha (óbvio que com seu nome em destaque) e ajudavam no que podiam o bom desempenho de toda a chapa na urna.

Via de regra, o candidato a deputado federal ‘casava’ com um nome que concorria a deputado estadual – e os dois amparavam-se em candidatos a vereador de diversos municípios que, por sua vez, faziam o trabalho de ‘formiguinha’ em seu reduto eleitoral.

Não raras vezes os aspirantes a deputados sequer conheciam onde se situava aquela região.

Os nomes dos candidatos ao Senado e ao Governo do Estado vinham de arrasto em todo esse trabalho.

Vou lhes contar como o Nasci tirou proveito desta situação única.

IV.

Alguém aí se recorda daquelas enormes folhas de papel que serviam às primeiras impressoras da era dos computadores?

Se não me engano eram chamadas de impressoras matriciais.

As folhas eram retangulares, 60 centímetros por 40, e engatadas umas às outras para dar sequência à impressão.

Lembram delas?

Pois bem…

Era um perereco livrar-se das tais depois de usadas.

Na Velha Redação de piso assoalhado, entulhavam o porão. Até que “o homem do ferro-velho” desse um fim apropriado à papelada.

Não sei se ainda existe ferro-velho. Hoje se fala em cooperativas de recicláveis e desconfio que as próprias se encarreguem de tratar matéria do gênero e outras mais. Mas, naquele tempo, a montanha ia, do porão, para o que chamávamos de “ferro-velho” em uma carrocinha puxada por um homem de meia-idade a quem tratávamos genericamente de “o homem do ferro-velho”.

Nasci visitou o jornal exatamente em um desses dias.

A Redação começava a se informatizar – e Nasci, que era do tempo das máquinas de escrever, estranhou a movimentação.

Alguém lhe explicou o que estava acontecendo – e eis que brilhou de novo a lampadinha do Professor Pardal como era de hábito sempre que tinha uma boa ideia.

Dias depois começaram a chegar à casa do vereador Almir Guimarães toneladas daquele tipo de papel. Na lavanderia que havia no fundo do quintal, também a pedido do inesquecível amigo, montou-se uma improvisada oficina de silk screen.

Vivíamos um janeiro acalorado.

Mas, o brancaleônico staff do vereador já estava a postos para dar início à santa cruzada em prol da reeleição.

Ali, teve início à produção de cartazes que anunciavam a candidatura de Almir. Cada duas folhas daquelas geravam um cartaz. No costado em branco do papel apareciam o enunciado e o rosto do vereador – ou o contorno de suas feições – nas mais diversas cores.

(Não preciso dizer mas digo que Nasci arrematou todo o estoque da tinta apropriada que encontrou nas lojas, não importando qualidade ou tonalidade das cores.)

As leis eleitorais não eram tão eficazes.

Também não havia a Lei Cidade Limpa, do prefeito Kassab.

Para tristeza do pessoal da Chic Show e de outros tantos que trabalhavam com os chamados “pirulitos” na divulgação dos espetáculos da cidade, a dupla Nasci e Almir foi implacável.

Eles empapelaram toda a cidade, com os dizeres:

VEREADOR
ALMIR GUIMARÃES
Sempre presente

V.

Como peça publicitária, aqueles arremedos de cartazes só seriam premiados na categoria “Hediondos”. Mas, deram um resultado danado, especialmente no partido.

Pelo rebuliço que causaram ao colorir e assustar a cidade, até os próceres do MDB reconheciam que o moço da Vila das Mercês (o Almir era um dos diretores da Sociedade de Amigos local) vinha forte para a vereança. Sua campanha – mesmo sem respeitar lá os requintes estéticos – tinha pegada e “causava”.

(Imaginem o que os adversários pegos de surpresa diziam dos tais?)

A partir dessa contestação não faltaram candidatos a deputados a querer “bater chapa” com Almir. Mesmo o próprio MDB começou a distingui-lo como um “puxador de votos” que bem merecia um tratamento especial.

Acreditem! Até o então candidato ao Governo do Estado, Franco Montoro, e um dos pleiteantes ao Senado, Almino Afonso, visitaram o bairro do Ipiranga, lado a lado, com o vereador Almir Guimarães.

Todos sorridentes e em uma campanha que, diga-se, se tornou histórica.

De posse de tantos e solertes “apoiamentos”, Nasci partiu para a segunda fase da campanha. Desativou a valorosa oficina de silk screen e projetou novos cartazes a serem rodados na melhor gráfica da região. O destaque era para a foto, o número e o nome do vereador Almir Guimarães, sempre presente. Mas, havia também um lugar onde se apertavam números e nomes dos candidatos a deputado estadual, deputado federal, senador e governador.

Eles e/ou o partido que bancaram o novo visual da campanha.

Todos se deram bem. Almir foi o mais votado vereador da região do Grande Ipiranga, além de alavancar a votação de todos eles. Teve 82 mil votos – um dos candidatos a vereador mais votado em São Paulo.

Nasci agradecia indiferente quando o cumprimentavam pelos resultados da campanha e pela ideia genial daqueles cartazes mambembes que inundaram a cidade no momento em que a campanha de todos sequer havia saído às ruas.

Modesto, ele dizia simplesmente:

— Foi ideia do meu filho, o Júnior.

No fundo, no fundo, o Nasci, primeiro e único marqueteiro que conheci, era genial até quando se fazia de um tímido que nunca foi.

* Publicado pela Revista Brasileira de Marketing Político – Ano IV – Número 5 – Janeiro /Julho 2011 – ISSN 2177-8019

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