"Vocês que fazem parte dessa massa/ Que passam nos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber/ E ter que demonstrar sua coragem/ À margem do que possa parecer/ E ver que toda essa engrenagem/ Já sente a ferrugem lhe comer…"
O presidente falou. O ministro detalhou item a item. Os economistas analisaram. Os empresários chiaram. E a moça do noticiário da TV resumiu todo o pacotão em duas palavras: "Tempos difíceis". A quarta-feira foi toda assim. Aliás, encerrada a disputa eleitoral, o tal embrulho veio à tona, com uma significativa dose de apreensão e ansiedade para os diversos segmentos da sociedade. Aliás, ricos e pobres, feios e bonitos, gordos e magros, sem distinção de credo, raça ou cor, só queríamos saber em que parte seríamos atingidos.
A grosso modo, sabíamos que ninguém escaparia do arrocho. Por isso, na manhã de ontem, ao entrar no carro para vir para Gazeta do Ipiranga, preferi trocar o noticiário habitual do rádio por alguns minutos de música. Tento fugir do duro embate "que aos fracos abate". E, de pronto, enfrento os versos proféticos de Zé Ramalho em "Admirável Gado Novo". Criada em meados dos anos 70, quando o intérprete paraibano aportou no sulmaravilha, a canção parece trilha sonora dos tempos que hora vivemos. "E oô…Vida de gado/Povo marcado/E povo feliz".
Quase que de imediato ocorre-me uma outra história que, ainda nos tempos ditatoriais, costumava ocupar este mesmo espaço sempre que os então senhores do Poder nos ameaçavam com pacotes, medidas provisórias, aumentos de impostos e que tais. Trata-se da história do senhor que, não sabendo como administrar as expectativas de seus familiares, descontentes com o estado lamentável em que se encontra a moradia, recorre a um expediente. Compra um bode e amarra ao pé da mesa da sala, próximo ao aparelho de TV. Ninguém entende nada. E as reclamações aumentam consideravelmente. Esposa, filhos, sogra, sogro, cunhados, vizinhos concentram toda sua ira e indignação na presença daquele estúpido animal.
Passam-se os dias e os familiares continuam inconformados. Unem-se diante do problema comum — justamente eles que, anteriormente, pensavam cada qual nos seus aposentos. E sussurram e falam e gritam! Ameaçam ir aos órgãos públicos, a manifestar-se em praça pública. Tudo em vão. O senhor continua convicto e anuncia, em pronunciamento oficial, que essa medida é necessária, pois garante um futuro promissor para todos…
Trinta dias depois. Uma surpresa. O senhor chegou e, sem nenhum alarde, levou o bode embora… Ao voltar para casa, todos estavam felizes. Agora, sim, poderiam viver felizes naquela confortável moradia. E, por um bom tempo, ninguém reclamou das goteiras, dos tacos soltos, dos vazamentos, do sistema elétrico que queimava todas as lâmpadas, do chuveiro que não esquentava no inverno e das rachaduras nas paredes da laje, que aumentavam dia-a-dia… E poderiam por a casa abaixo em questões de segundos…