Foto: Largo São Francisco, panorâmica/Divulgação
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Sonhou que havia sonhado…
O mundo era outro ou ele era outro?
Talvez.
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Os bondes corriam pelos trilhos da rua Lavapés.
Os homens usavam chapéus.
As tecelãs, de braços dados, caminhavam pelas calçadas a comentar sobre amores e desamores.
Alguém assoviava uma linda canção de Nélson Gonçalves. Ou seria do jovem e promissor cantante Cauby Peixoto?
O menino a tudo assistia, diante da janela, ao lado do avô Carlito e o inestimável parceiro deste, o copo de vinho.
O bom homem ria conformado a brindar:
“O país e seu gentio andam no vinagre. Sempre foi assim. Mas, vai melhorar.”
“A vida acontece nos por_enquantos!”
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As imagens, aos poucos, tomaram um tom sépia e foram desaparecendo.
Ele já não era o garoto, mas ainda sonhava.
Jovem, cabeludo, sem prumo e sem rumo.
Hiponga, sem causa ou rebeldia.
Ganhava uns trocados na loja de disco do amigo do pai, o Sr. Luizinho.
A birosca ficava nas imediações do Largo de São Francisco.
Ele queria ouvir as músicas dos Beatles, mas o chefe insistia em tocar “A Última Canção”, de um tal Paulo Sérgio, que fazia um sucesso estrondoso.
“Mais toca. Mais vende, garoto!”
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Manda quem pode.
Será?
Naqueles idos de maio e junho do ano que não terminou de 1968, quase toda tarde os estudantes da Faculdade de Direito se reuniam em frente ao prédio histórico, com a conivência e observaçãosdos padres da igreja ao lado, justamente a de São Francisco.
Protestavam corajosamente contra o governo militar.
“Abaixo a ditadura!”
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Era inevitável o confronto.
Chegava a Cavalaria, porrete em punho para dispersar a estudantada.
Correria para todos os lados.
Sempre havia uma penca de estudantes a buscar abrigo na modesta loja.
Baixávamos às pressas as portas de aço. Para evitar que os policiais invadisse.
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Cessava a música.
Tensão.
Todos à espreita do que pudesse acontecer.
“A luta continua!” – bradavam decididos assim que as portas se abriam.
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Despertou.
Ainda e um tanto injuriado.
Não soube dizer para si próprio o que acabara de viver ou reviver nos contornos da madrugada fria de outono.
Um pesadelo?
Ou apenas lembranças que lhe marcaram e nunca lhes deu relevância devida?
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Pois é…
Ele e o mundo continuam os mesmos – e, desconfia, assim será “in saecula saeculorum”.
Ponderou que, desde então, só fizera viver os por_enquantos que lhe coube.
Não tem do que se queixar.
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Até gostou de lembrar o vô Carlito. Que, vale dizer, à sua maneira e sob os eflúvios do vinho Castelinho, era um sábio – e ainda atual.
“O país e seu gentio andam no vinagre. Sempre foi assim. Mas, vai melhorar.”
Cada um, cada um.
Cada tempo com os seus…
A vida acontece por encanto, vô!
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O que você acha?