UMA NOVELA BLOGUEIRA – (Foto: Reprodução)
O ATOR, livre de toda e qualquer recaída de pisar num palco ou se embarafustar em novas encrencas por uma mulher. Ver para crer…
– Esta é a minha história. Triste história. Foi assim que voltei para o pedaço de chão onde nasci e me criei. E é assim que sobrevivo, senhor Carlos. Carlos, né? Carlos Artúlio, certo? Certo! Então, vou subindo e descendo a Bocaina, repasso minhas memórias, toco minhas modinhas na gaita… Este é o meu trabalho. Tendo saúde, o resto, com um tantinho de vontade, a gente ajeita na fé do Senhor, Nosso Deus. Amém!
Mais essa agora. É o jeitão melancólico – e algo fantasioso – desse Felisberto que me desconcerta ainda mais em meio a esse fio de estrada que me leva para o auto-exílio na Serra da Bocaina.
Sempre admirei a felicidade que a vida no campo demonstra impingir às pessoas que aqui vivem.
Será que me enganei?
Tarde demais, estamos a caminho.
Ver para crer.
…
Me aproximo dos 60, ator por profissão. Amo estar em cena, mas cansei…
Perdi a conta das vezes que subi num palco, encarei as câmeras de TV e os sets de filmagens. Vivi desde os clássicos shakespearianos ao muambeiro paraguaio num ruidoso Caso Especial para a TV. Conheci Adolfo Celli no auge do Teatro Brasileiro de Comédia (nunca houve mulher igual à Tônia Carrero, lindíssima), participei de algumas montagens do Teatro de Arena que mudou a história da dramaturgia por aqui. O Brasil em cena.
Declamei poemas num monólogo à época da ditadura.
Era o que se podia:
“Tudo vale à pena se alma não for pequena”.
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Sobrevivi, enfim, aos trancos e barrancos num tempo em que a profissão, a mais linda do mundo, não possuía o glamour que hoje tem. Nunca recebi os astronômicos salários que a TV hoje paga a uma minoria de privilegiados. Não os condeno, por isso. Mas, minha lenda pessoal é outra: transformar a sociedade, fazer o registro de um tempo, dar consciência e vivacidade ao cidadão; pilares para a construção de um mundo melhor.
Algo aventureira a proposta.
Resumo da ópera: com meia dúzia de diálogos, queríamos, eu e os meus, mudar o mundo.
Confesso o paradoxo: não sabíamos – nós, os sonhadores – sequer administrar nossas vidas de homens comuns, falíveis, aburguesados. Éramos presunçosos, arrogantes por vezes, senhores da Cultura, grafada assim com C maiúsculo.
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Os delírios, surrealistas ou não, desse senhor de botas de couro de cobra e chapelão não estão me deixando confortável, ainda mais dentro desse carrinho. Também me fazem sentir melancólico e, pior, amargoso.
Preciso desse tempo. Quero enfrentar a velhice com sabedoria e, principalmente, serenidade.
Cansei de competir com galãzinhos de trinta, quarenta anos, por papéis inexpressivos em novelas que são verdadeiras odes à imbecilização da massa. Cansei dos rigores das dietas, das batalhas na academia, do mundo fashion e marqueteiro que invadiu toda e qualquer montagem. “Vamos colocar tal caco no texto original, assim teremos o patrocínio de tal empresa”. “Vamos fazer isso por causa daquilo”. “Convida a Fulana porque assim a montagem tem chamada no horário nobre da TV”.
É por aí – e daí!
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Ah, sem contar os diretorezinhos de merda.
Eles se acham gênios da raça. Que tudo na vida acaba em desbunde, happening, granfinalle.
Imaginam-se na Broadway.
Uns bostas de uns bem-nascidos que mal saíram da adolescência, mas sabem o caminho das pedras junto à mídia.
Qualquer bobagem que dizem vira manchete nas páginas dos cadernos de variedades – e isso é tudo o que um espetáculo precisa para arrastar multidões, fazer sucesso.
– Amigo, amigo, pare o carro, por favor. Preciso esticar as pernas por uns minutos. Tomar um ar.
(Esse vomitar de mágoas não me faz bem. Ando pelas tampas.)
…
Por isso (e também por um recente nocaute amoroso que ainda dói) peguei três ou quatro mudas de roupa, duas caixas de livros para reler (não confio em novos autores) e me mandei para cá. É uma experiência que surpreendeu aos poucos amigos que me restam. Aluguei um chalé nos confins da Serra, lá onde o sol bate e se inclina, num lugar de nome estranho Pousada do Morro Torto. Vou ficar por lá algum tempo. Seis meses, no mínimo. Pode ser mais, vamos ver. Quero total e absoluta distância da civilização.
A quase dois mil metros de altura, penso estar livre de toda e qualquer recaída para pisar num palco ou me embarafustar em novas encrencas por uma mulher.
Ou mais grave ainda: pela mesma mulher.
…
O que você acha?