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O que o tempo leva… (43)

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UMA NOVELA BLOGUEIRA – (Foto: Arquivo Pessoal)

 

O ATOR reflete sobre os desígnios de um (in)certo senhor chamado Destino. E se pergunta: para onde foi a leveza de outros tempos? Sem resposta…

 

Um amigo querido, homem de teatro como eu, namorador como eu, brincalhão como eu nunca consegui ser, tinha um dito bem divertido sobre o fim dos relacionamentos amorosos:

“O que acaba com tudo não é necessariamente a falta de amor. São as mulheres que mudam e esquecem de nos avisar. Acordam, olham-se no espelho e dizem: sou uma nova mulher. Tascam um ‘você me sufoca’ e nós, atônitos: O quê? Como assim? Hã? Perdeu, camarada, perdeu.”

Ele ainda nos divertia ao acrescentar o bordão de um personagem de sucesso que o consagrou na TV:

– Tô certo ou tô errado?

Queria ter a leveza e o jeito bom de tocar a vida que o amigo tem.

Talvez não estivesse agora aqui. Me entendendo livre para chutar tudo para o alto – e fugir dos meus assombros. Uma jornada em busca do autoconhecimento ou apenas uma fuga estratégica como fez o novo amigo Felisberto?

Sei, não…

– Chegamos! Quer dizer, quase quase. Falta o ritual das porteiras. Logo mais o doutor-ator vai conhecer o novo lar. Tem certeza que é isso mesmo o que o senhor quer?

Felisberto, o Filósofo, na sua simplicidade, parece mesmo adivinhar as dúvidas que batucam no meu coração.

Sejamos firmes na resposta:

– Quantas porteiras são?

– Três.

– Que história é essa de ritual?

– Não sei também. Inventei agora.

– Como assim? Está me testando, é?

– Brincadeira. É um cerimonial meu. Paro o carro, abro a porteira. Faço minhas orações de agradecimento por mais esse dia, mais essa jornada, mais esse pedaço de pão ganho com o meu santo ofício, pois o Senhor nos guardou no caminho. Assim vou e volto. Deus caminha comigo.

– Tem certeza que assim chegaremos lá antes de anoitecer?

– Esquece a pressa, doutor. É tudo muito rápido. Se eu não contasse, o amigo nunca iria descobrir. Vá se acostumando, doutor. Por aqui, tamanha a solidão, cada um inventa um jeitão de falar consigo mesmo.

– Isso é dramaturgia, Felisberto. Cada qual a representar o próprio personagem a lhe enriquecer com cacos e delicadezas. Aliás, a vida e a arte se equivalem.

– Uma imita a outra, não é assim que dizem? E eu digo que a outra é que imita a uma.

– Tem a ver.

– Sabe, doutor, às vezes, penso que não era propriamente eu o pacato cidadão que morou em São Paulo e viveu tudo o que viveu. Era alguém bem parecido comigo. Hoje a história toda se desenrola como fita de cinema, dessas que grudam na memória da gente.

Espero que Felisberto retorne à cabine para lhe responder algo sem grande convicção.

– O que posso lhe dizer? Não temos um padrão único ao longo da vida. Somos assim – e pronto. Cada qual carrega dentro de si nuances que se transformam a cada vivência. Seria até muito chato se todos nossos ciclos fossem previsíveis e rigorosamente iguais. O que somos hoje, certamente, não seremos amanhã. Você que gosta de recolher frases e pensamentos, anote mais essa: “O mesmo homem não atravessa duas vezes o mesmo rio”. Dá para entender?

– Sim, sim. Homem e rio mudam a cada momento, a cada rolar das águas. Sou do mato, doutor. Desse trem, eu entendo.

– Pois então…

E logo surge a segunda porteira.

Felisberto para o Fuscão, salta e caminha rapidamente de cabeça baixa.

Volta para o carro ainda de cabeça baixa a movimentar levemente os lábios.

Passamos, ele breca, desce, fecha a porteira, volta para o volante e lá vamos nós.

– Que o Senhor nos abençoe!, faço a saudação impulsivamente quando retomamos a estreita e irregular estrada.

Faz-se um silêncio natural.

Tenho quase certeza que Felisberto reflete sobre nossa conversa ao longo do caminho.

Se a tal Lucilinda não tivesse existido do jeito que existiu em sua vida, é muito provável que ele não estivesse aqui agora.

Eu o vejo feliz na medida do que é possível ser feliz longe de quem se ama.

Um tanto assustador, pois penso que entendo a cada minuto um pouco melhor do assunto – e me espanto.

Também estou a esgrimir meus fantasmas.

Penso também nos tais desígnios de um (in)certo senhor chamado Destino.

Para onde foi a leveza de outros tempos?

 

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