UMA NOVELA BLOGUEIRA – (Foto: Arquivo Pessoal)
NASCE a amizade. O sensível Sancho Pança e o Casanova alquebrado conversam sobre o amar, sumo da vida. Citam Drummond, o poeta: Não há nada além…
Felisberto até que é divertido.
Não sei se o convenceram as explicações que lhe dei sobre o fato de chamar de Dulcineia as mulheres que desfilaram pela minha vida.
– Quero preservar alguns nomes de uma possível indiscrição. Outros, vou ser sincero, ainda tenho dificuldade em dizê-los. Este ou aquele, em especial… Mas deixamos assim… Faz diferença?
Não deixo que responda. Pergunto logo:
– Você conhece o romance de Dom Quixote e o amor exacerbado por uma dama da corte, de nome Dulcineia Del Taboso que, a bem da verdade, era unicamente fruto da imaginação do gajo?
– Conheço, sim. De ouvir falar. Ler, não li não. Mas, de tristezas e abandonos, doutor, bastam os meus. Prefiro que me conte as suas aventuras. Parece que o doutor soube aproveitar os ventos que lhe sopraram no amor.
– Não sou doutor. Me chamo Carlos Artúlio.
…
Será mesmo que me dei mesmo ao desfrute?
Tenho lá minhas dúvidas.
Arrependimento, nenhum.
Apenas vivi o que me coube viver.
Inclusive com a moça que queria morar num apartamento sem paredes, eu…
– Guarde essa aqui, Felisberto, para o seu caderninho:
“Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.”
– O autor é o poeta Carlos Drummond de Andrade.
…
– Bom, muito bom também, gostei. Desculpe se pareço abusado, doutor, mas já que tocou no assunto. O senhor não casou não, mas morar junto morou?
Providencial a indagação do meu novo amigo.
(Desconfio que seremos bons amigos.)
– Algumas vezes. O difícil não era o chegar e, sim, o momento de partir. A divisão das coisas, o luscofusco que permeia o futuro, a sensação de perda que é inexorável, de que somos efêmeros… Mesmo que se saia só com a roupa do corpo, é sempre traumatizante.
– Não sei o que é inexorável. Mas, sei como é. Dói demais.
– Você já foi casado?
– Não. Mas foi por um quase, doutor. Um quase.
…
Felisberto recorre outra vez à gaita para exorcizar seus fantasmas,
Sem se dar conta que, aos meus olhos, traveste-se em um destrambelhado e sensível Sancho Pança.
Eu me vejo não como o Cavaleiro Andante e, sim, como um Casanova alquebrado com as linhas do rosto e o coração marcados por destemperos e inglórias jornadas.
Na verdade, um homem comum.
Apenas um homem só.
Mas que se permite sonhar e querer mais.
…
Lembro mais dois ou três breves envolvimentos para que, por favor, ele pare com o que chama de música d’alma.
Sei que este é um recurso um tanto desleal, de gosto duvidoso.
Mas ele parece gostar.
Especialmente da história da Cigana, de pele cor de jambo e curvas insinuantes. Ela me parou à porta do restaurante Piolin. Pediu para ler a minha mão. Disse que eu estava prestes a sofrer uma grande perda. Deveria ficar esperto. Não podia vacilar. Senti suas mãos quentes envolverem a minha. Entendi que, babau consulta, era o sinal.
E era, e foi.
Fomos pra casa.
Na manhã seguinte, desapareceu.
Levou meu relógio, minha carteira e o prêmio que ganhei da Associação Paulista dos Críticos de Artes como Ator Revelação.
Ela imaginou que a estatueta fosse de ouro maciço.
E eu já tinha quase 40 anos e uma sólida carreira quando a APCA descobriu que eu existia.
…
Felisberto riu a valer da minha tonguice.
Fez um comentário bem pertinente:
– É, doutor. Pelo visto, nesse dia, a banana engoliu o macaco.
Voltou para a sua ‘música d’alma’; e eu, em pensamento, para o meu inventário amoroso.
Temos ainda algum tempo de viagem.
…
Houve uma, muito especial, talvez. Aquela Dulcineia que me pediu a certeza do futuro. Só pude lhe dar o presente quebradiço, de afeição, desejos e incertezas.
Viajou. Sempre disse que assim faria caso eu não me decidisse.
Um dia, triste dia, eu a esperava no lugar de sempre.
Olhei para o céu e vi o avião… E disse pra mim mesmo:
“Ela não veio e não virá.”
(Acho que já contei essa história?)
…
”
O que você acha?