Não sou de lembrar o que sonho. Na verdade, até hoje pela manhã, se me perguntassem, diria que não lembro nada do que sonho. Quando acordo, só tenho nítida a sensação de quebradeira pelo corpo pesado. Como se um trator houvesse me atropelado noite adentro. Sensação que, aliás, só se dissipa após a primeira chuverada do dia, preferencialmente de água fria.
Hoje, porém, acordei diferente. Sentia-me leve e feliz.
Vou lhes contar o que sonhei. Talvez, vocês, meus caros cinco ou seis leitores, me ajudem a desvendar se algum significado nisso tudo.
II.
Foi assim.
No sonho sonhado, sei lá o porquê precisava descer uma longa escadaria. Os degraus eram estreitos, de cimento escuro. Estavam molhados e um filete de água clara escorria e formava pequenas poças ao longo do trajeto.
Não me dei conta de como cheguei ali. Mas, me pareceu, não ter alternativa outra senão seguir em frente. Foi o que fiz. Primeiro, temeroso, com cuidados extremos. Medo de despinguelar escada abaixo. Insegurança natural a quem não sabe aonde vai e porque vai. Dava o passo, firmava o pé no chão e só depois me arriscava a prosseguir. Lentamente.
À medida que caminhava fui ganhando confiança e alguma velocidade.
Logo, uma música inaudível – mas que eu, e desconfio que só eu, sentia – ritmou meus passos, cada vez mais acelerados e incontroláveis. No saltar entre um degrau e outro era como se uma estranha dança se apoderasse de mim. Um sapatear divertido e alucinado, especialmente quando alcançava uma daquelas poças.
Fartava-me em, com os pés, espirrar água para todos os lados.
Ri a valer dos meus malabarismos. Tanto que cheguei a torcer para que a escadaria nunca tivesse fim. Saboreava uma sensação deliciosa. De alegria plena.
III.
Não sei se já lhes disse em posts anteriores, mas vida a fora fui – e sou – o chamado ‘pé-na-parede’. Que é o inverso do que o meu pai, um notável dançarino, chamava de ‘pé de valsa’. Traduzindo: sempre fui o cara que se recostou a um canto do salão, apoiado em uma das pernas, com expressão de poucos amigos e indiferente aos rodopios dos casais na pista.
Daí, o êxtase e a surpresa em reconhecer em mim tamanha habilidade.
E eu, ranheta que sou, que sempre questionei o prazer da dança – com observações tolas, tipo: “Como a pessoa pode encontrar a felicidade ao levantar os dois dedos indicadores e cair no samba?” –, nem pedi satisfação a mim mesmo por tamanha e indescritível alegria.
Não recordo como a história acabou. Mas, como disse, acordei leve e feliz. Não exagero em dizer que me senti um Geny Kelly ou um Fred Astaire. Longe de mim tal conclusão. Mas, lhes garanto, aprendi duas lições.
A primeira: tenho a sincera impressão de que deixei escapar alguns bons momentos da vida por não saber dançar.
A segunda: não dormir com a TV ligada, pelo menos enquanto estiver programado para ir ao ar, a cada intervalo comercial, aquele anúncio chatinho do rapaz que tem compulsão por sapatear nos momentos mais insólitos…