"O tempo não pára no porto, não apita na curva, não espera ninguém."
01. Pisamos em dezembro, e um certo assombro nos cai dentro d’alma. Creio mesmo, não podia ser diferente. Afinal, não é um dezembro qualquer, é dezembro do ano 2000, ano sobre o qual tanto falaram; profético, cabalístico, definitivo, renovador…
02. A reflexão fica por conta do calendário, é bem verdade. Mas também da consulta que um leitor veio fazer nas coleções de Gazeta do Ipiranga. Num canto de página amarelecido pelo tempo, que o leitor bem aos moldes brasileiros esqueceu de colocar no lugar de origem, lá está a entrevista que fiz com um certo senhor Eufrázio lá pelo fim dos anos 70. O forte sotaque nordestino denunciava as origens, que a tez morena, acentuada pelas profundas rugas no rosto, só fazia por confirmar. Ele morava no Conjunto Habitacional de Carapicuíba e trabalhava numa fiação, aqui, na região.
03. Lembro-me bem que falava pausadamente, com resignação do seu batalhado dia-a-dia: a vida nem sempre nos dá escolha, nos dá outra saída. A gente é o que é. Tem o que tem — e pronto. Adianta nada ficar amuado. Desesperar-se também não. O jeito é ir levando… Procurar fazer o melhor possível. Enfim ser um bom sujeito.
04. À época, está na reportagem, Eufrázio beirava os 50. Além das oito horas diárias de trabalho, tinha mais quatro de condução. Fazia, disse-me em tom confidencial, por vezes, as contas dos anos que faltavam para sua aposentadoria. E tudo que havia acumulado, o fruto do seu trabalho, era o modestíssimo apartamento. Coisa pouca — é verdade. Mas, muito bem cuidado pela patroa e afilha do meio.
05. Notei aí um inusitado brilho em seu rosto até entào austero. Bem maior que — explicou — só mesmo os quatro filhos e o neto — garoto rechonchudo de ano e tanto que mal se equilibra sobre as duas pernas. Recordo-me que, minha primeira impressão, foi taxá-lo aos meus botões de conformista, resignado. O jeitão é ir levando…
06. Pôxa, atravessávamos um período sombrio. Repleto de vicissitudes e incertezas. O militarismo começava a dar sinais de exaustão. E ali sem questionamentos. Não quero que meus filhos sejam pessoas ricas, milionárias — dessas que têm de tudo. Deve ser muito bom. Mas, para eles, desejo apenas que tenham saúde e nunca se afastem do que é certo, justo e honesto.
07. Levei quase 30 anos para reconhecer a sapiência das palavras desse sólido senhor, de macacão puído e barba por fazer. Sei lá se foi a proximidade do novo milênio (agora, sim, é pra valer) ou se foi o desalento com tudo o que se vê, sei lá o que foi. Ao ver o recorte do jornal, assaltou-me o impulso de escrever sobre esses poucos minutos de proveitoso convívio. Penso que hoje, também nas quebradas do 50, entendo melhor a luminosidade de suas palavras e qual a real contribuição daquele senhor à sociedade — formar pessoas íntegras. É só isso que o Brasil do Terceiro Milênio precisa…