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Olhar estrangeiro

França, 2003.
30 de dezembro.
Madrugada em Alenson,
minúscula cidade na
região da Normandia.

Como vim parar aqui?

Acordo com o calor do quarto aquecido. Não imagino quantos graus está a temperatura lá fora. Mas certamente está frio; sem neve, mas muito frio. Mesmo assim, aqui dentro, a blusa de lã me incomoda – e abro mão dela para voltar para a cama antiga deste antigo quarto de um hotel antigo.

Estamos a 200 quilômetros de Paris, onde chagaremos muito provavelmente amanhã para as festas do fim-de-ano. Obviamente que ficaremos, como bons turistas, a perambular entre a Champs Élysées e a Tour Eiffel. Imagino a Babel em que se transforma aquele pedaço de mundo neste período do ano.

Deixemos para amanhã o que é do amanhã…

II.

Não foi só o calor do quarto que me fez despertar em meio à madrugada. Quase duas da manhã e me surpreendo sem sono quando deveria estar dormindo para a dura – e deliciosa – jornada que nos espera nos próximos dias.

Vocês virão comigo nesse tour?

Então, voltemos às minhas inquietações. A primeira – e mais óbvia – é o controle do dinheiro. Com o euro a quatro reais é mesmo de tirar o fôlego e arrebentar a banca deste malajambrado escriba andarilho.

Outro motivo – e talvez a dívida maior para comigo mesmo – é minha ausência deste bloco de anotações por dois longos dias seguidos, 28 e 29. Não sei se no futuro essas impressões terão forma de texto, mas quando comecei a imaginar essa ‘aventura’ me comprometi a fazer um relato dos meus passos. Assim que chegamos em Zurique (dia 26) tratei de anotar tim-tim por tim-tim (leia em “Teimosia – Blog, 22/04/07) nossa chegada – e foi só. E olhe que já passamos por duas cidades — Caen e Mont Saint Michel e estamos retornando a Paris.

Agora, em meio ao sono que deveria ser profundo, a consciência pesou e despertou-me para o relato das destemidas peripécias do Cavaleiro Andante em plagas normandas e adjacências.

III.

Vamos voltar a fita e retomar a partir da nossa chegada em Paris na sexta, 27. Saímos do aeroporto Charles de Gaulle a bordo de um Kangoo, da Rent-Car, e nos perdemos pelas avenidas ‘peripheriques’ da Cidade Luz. Um gira-gira que nos roubou quase duas horas até encontrarmos a ‘sortie’ para a auto-estrada que nos levou a Caen, ainda distante 100 quilômetros de Mont Saint Michel, nosso primeiro destino.

Num desses perdidos, avistamos o símbolo máximo, a Tour Eiffel. Acenamos e prometemos voltar para o reveillon.

IV.

A caminho da fortaleza de Saint Michel, o anoitecer nos surpreendeu na estrada. Não estava previsto. Mas, decidimos dormir em Caen, a cidade portuária onde as primeiras tropas aliadas desembarcaram para livrar a Europa e o mundo do flagelo da Segunda Grande Guerra.

Todos gostaram da solução. Agora a tarefa era buscar um hotel. Ziguezagueamos pelas ruas estreitas até encontrar abrigo ao alcance das nossas algibeiras no Hotel Dephon, de aparência acolhedora e com algum charme, eu diria.

Mesmo com o frio, ainda houve tempo para caminhar pelas ruas centrais até encontrar um lugar para jantar. A noite gélida não assusta ninguém por aqui. Menos ainda uma breve chuva que nos surpreendeu em pleno passeio público. Famílias inteiras, devidamente equipadas com coloridos casados impermeáveis, perambulam de um lado a outro pelas ruas próximas ao canal que dá para o mar.

Era como se nada houvesse – e lá no céu brilhasse um luar resplandecente.

V.

Ah! Cá estou a dizer o óbvio.

A chuva e a temperatura pelos arredores de zero grau são situações normalíssimas – e com as quais os habitantes aprenderam a conviver tranqüilamente. Os jovens se reúnem nos pubs e nos restaurantes (na verdade, estreitas cantinas), indiferentes aos rigores do inverno e aos nossos tíbios olhares de estrangeiros. Fiquei com a sincera impressão que, ao contrário dos nossos, não precisam de muito para ser feliz – e, assim à primeira vista, me parece que são. Não há traços de ostentação em nenhum deles. Mas, é visível, a miséria miséria, como conhecemos no Brasil, passa longe daqui…

VI.

Sábado, 28. Um passeio breve breve por uma feira livre, um gorro de 2 euros na cabeça e, outra vez, lá fomos nós. Rumo a Saint Michel. No rádio do carro, ouvi uma canção em francês. A introdução lembrou em muito a brasileira dos Doces Bárbaros, que diz “mistério sempre há de pintar por aí”. Acho que é do Gil, acho.

As canções se parecem tanto que não me espantaria se fosse mesmo uma improvisada versão. Só então percebo que a tal encantou-me como se fosse uma música nova de um novo tempo.

Confesso: rolou uma nostalgia do meu caminhar até aquele lugar, onde nunca imaginei por os pés e, de repente, me encontro diante de mim e do meu espanto.

Como a canção que me distraíra, seria eu uma nova versão de mim mesmo? Uma versão ainda mais distraída e confusa. Ou tudo ainda não passa de conseqüência do fuso horário?

Bem de qualquer forma, saudei os dias e os sonhos que me trouxeram até aqui…

VII.

Conferi minha expressão no espelho do carro. Me achei parecido com meu pai e do ar debochado que fizera, quando, por descuido ou acaso, assistiu na TV a um representante do Green Peace defender a proibição da caça à baleia. Contundente em seu depoimento, o moço propôs o seguinte questionamento aos espectadores, eventuais ou não.

— Se continuarmos com essa pesca e caça predatórias, logo logo esses pobres animais serão extintos, desaparecerão. É este o mundo que vocês querem deixar aos seus filhos e netos? Como as novas gerações sobreviverão sem conhecer ou ter visto uma baleia? Me digam, como?

Do seu sempre aberto baú de espantos, o Velho Aldo devolveu no ato a provocação.

— Tenho 80 anos e nunca vi um bicho desses. Ué, o que fiz então até agora? E olhe que não posso me queixar. Não tenho muito, não. Mas, tudo o que tenho me é caro…

É isso.
Próxima parada: Mont Saint Michel.
Até porque mistério sempre há de pintar por aí…

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